Comissão cobra reparação do governo federal para ribeirinhos afetados por hidrelétricas em Rondônia

A denúncia foi realizada em 2015, detalhando à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, a reincidência de omissões do governo federal, desde a construção do complexo elétrico sobre o mais importante rio de Rondônia aos impactos gerados até hoje. (Reprodução/ Internet)

18 de dezembro de 2021

13:12

Iury Lima – Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) – O governo brasileiro tem três meses, a contar de dezembro, para dar explicações à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre os impactos gerados pelas hidrelétricas do complexo do rio Madeira, em Rondônia, formado pelas usinas Jirau e Santo Antônio, instaladas em Porto Velho. O processo foi motivado pelos retrocessos ambientais e danos causados a cerca de 60 famílias da comunidade ribeirinha de Cujubinzinho, a 35 quilômetros da capital rondoniense.

A denúncia foi realizada em 2015, detalhando à CIDH, a reincidência de omissões do governo federal, desde a construção do complexo elétrico sobre o mais importante rio de Rondônia aos impactos gerados até hoje, além da omissão do judiciário brasileiro. Desde então, já são quase 50 denúncias protocoladas em favor da comunidade que não foi considerada nos estudos ambientais realizados pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), para a instalação das usinas.

Moradores da comunidade de Cujubinzinho, em Rondônia, foram negligenciados pelo Executivo e Judiciário antes, durante e após a instalação das usinas de Jirau e Santo Antônio. (Reprodução/ Governo de Rondônia)

A Comissão Interamericana é o principal instituto da Organização dos Estados Americanos (OEA), que trabalha com objetivo de observar e promover a defesa dos direitos humanos, em caráter consultivo. Já a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez – onde o processo deve parar caso não haja posicionamento do governo federal -, funciona como instituição de Justiça autônoma, aplicando e interpretando parâmetros da Convenção Americana de Direitos Humanos. 

Impactos da negligência

Invisibilizados antes, durante e após a instalação das hidrelétricas, a população que vivia do plantio, da pesca e da venda produtos, agora sofre os impactos econômicos, além dos danos ambientais que assolam o ecossistema da região, como contou à reportagem da CENARIUM, a professora de Direito, pesquisadora e pró-reitora da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Neiva Araújo, que acompanha a comunidade de Cujubinzinho desde, pelo menos, 2013. 

“Antes mesmo das cheias de 2014, eles já vinham sofrendo, inclusive em razão da rápida oscilação do rio, porque não tem, aqui, um sistema de monitoramento e de aviso àquelas comunidades. Eles já reclamavam da perda de barcos e de algumas influências do rio, inclusive sobre a condição da água. Nós identificamos, em algumas visitas, que a água tinha um cheiro super forte e que não estava própria para o consumo, sendo que essa situação se agravou em 2014”, revelou Araújo, que também luta pelos direitos de outras populações ‘invisíveis’, por meio do grupo de pesquisa Direito, Território & Amazônia (Diterra), vinculado à Unir.

“Muitas famílias que tinham algum parente que morava em Porto Velho, ou que vivia em outra localidade, acabaram migrando para ficar próximos desses familiares, porque as cheias de 2014 desestruturaram gravemente todo o tecido social que havia lá. Outras pessoas que continuam na localidade, seguiram plantando, mas tiveram dificuldade de escoamento da produção porque a estrada também foi liquidada com esse acúmulo de sedimentos das cheias de 2014”, detalhou a especialista. 

A professora, pesquisadora e pró-reitora da Universidade Federal de Rondônia (Unir), Neiva Araújo, se preocupa com a falta de água potável e condições de subsistência na comunidade Cujubinzinho. (Iury Lima/ Cenarium)

Outro problema além da indisponibilidade de água ideal para o consumo e higiene é a insegurança alimentar das famílias. “Nós estamos no meio de uma pandemia e a recomendação é lavar as mãos com frequência para evitar o contágio, e essas pessoas não têm acesso a água de qualidade. A interferência na localidade também acabou afetando tanto a qualidade de vida, quanto a economia, devido ao fato de que quando há alteração nas dinâmicas do rio, também acontece uma alteração na oferta de peixes, tanto em quantidade, quanto no número de espécies. Então, o rio, embora esteja alí do lado, não necessariamente vai disponibilizar aquela quantidade de peixes com a qual eles estavam acostumados”, destacou Neiva Araújo.

Alterações no rio Madeira também está afetando a disponibilidade de peixes, um dos principais alimentos da comunidade. (Neiva Araújo/ Reprodução)

Pré-admissibilidade

O processo chegou à fase de pré-admissibilidade neste mês de dezembro, ou seja, o Estado brasileiro conta com prazo para se manifestar, considerando que o andamento, apreciação do caso e julgamento na corte internacional, dependem deste posicionamento.  

O advogado que ingressou com a ação na Comissão Interamericana, Gustavo Caetano, explicou, em entrevista à CENARIUM, que tal manifestação deve ser feita pelo ministro de Relações Exteriores do Governo Bolsonaro, o embaixador Carlos Alberto Franco França. “A Comissão também faculta nessa intimação que, se o Estado Brasileiro entender por uma possibilidade de solução amistosa, fundamentada no respeito aos direitos humanos, poderá realizá-la”, detalhou Caetano. 

Para o advogado Gustavo Caetano, tanto o governo federal quanto o judiciário rondoniense têm sido omissos em relação as 60 famílias ribeirinhas. (Iury Lima/ Cenarium)

Segundo o especialista, se o prazo for ultrapassado e se, além disso, a solução amistosa do conflito não acontecer, prorroga-se o tempo de espera para mais um mês, bem como surge a implementação de novas exigências. “E poderá a Comissão também convocar as partes para uma audiência e, se achar necessário, realizar uma investigação na comunidade. As deliberações quanto ao mérito serão privados e todos os aspectos e debates, confidenciais”, acrescentou. Depois disso, ocorre a deliberação de mérito e a constatação – ou não – de uma ou mais violações. “A  Comissão preparará um relatório preliminar com as proposições e as recomendações que achar pertinentes e o transmitirá para o Estado brasileiro. Neste caso, fixará um prazo para que o Estado informe a respeito das medidas adotadas e o cumprimento dessas recomendações”, informou.

Por fim, a Comissão notificará os peticionários sobre a adoção do relatório e sua transmissão ao País, segundo Caetano. Como o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, ao ser notificado, recebe a oportunidade de apresentar posição a respeito do caso e o envio à Corte Internacional. “Então, ele [o processo] sai da esfera da Comissão e vai para a esfera da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Esse julgamento na Corte pode emitir uma sentença que declare a responsabilidade internacional do Estado brasileiro pela violação de um ou mais direitos da Convenção Americana”, complementou o advogado. 

Julgamento industrializado

Para Caetano, que já patrocinou cerca de 47 ações em favor de Cujubinzinho por meio do próprio escritório de advocacia, o Judiciário estadual tem sido omisso, além de julgar as petições de forma “industrializada”, sem que haja a atenção devida à seriedade do problema.

“A gente tem uma certa omissão do judiciário de Rondônia, que, infelizmente vem julgando essas ações judiciais de forma massificada, de forma industrializada. O Judiciário está deixando a desejar na apreciação do caso a caso, na parte concreta, na apreciação da prova e na análise dos exames periciais que estão sendo realizados”, denunciou o advogado.  

As ações no âmbito da Justiça do Estado de Rondônia visam indenização financeira, o que, na avaliação da professora e pesquisadora Neiva Araújo, não soluciona a devastação ambiental, mas oportuniza, ao menos, autonomia da população ribeirinha. “Compensação financeira é apenas uma forma de educar os empreendimentos para que isso não ocorra, porque é sempre no bolso que dói e acaba tendo esse efeito educativo. Mesmo com a indenização, não se consegue voltar aos status quo da coisa, à situação que eles vivenciavam antes. Mas, essa indenização, no mínimo, deve possibilitar que eles adquiram um imóvel e que eles recomecem a vida”, disse a pró-reitora da Unir e líder do grupo Diterra.

“É importante que nós tenhamos um mínimo de empatia e nos coloquemos no lugar dessas populações, porque elas estão acostumadas a uma dinâmica de vida. Existe, ali, todo um cotidiano de pesca, de extrativismo (…) então, nós tiramos essas pessoas dessa condição à qual elas estão habituadas sem dar o mínimo de condição para que elas recomecem. É preciso haver um equilíbrio nessa relação entre empreendimento, governo e populações impactadas”, ponderou.  

Governo de Rondônia também tem culpa

Tão omisso quanto o governo federal e o Ibama, foi o governo de Rondônia, que não teria intervindo pela comunidade ribeirinha tão próxima da capital, onde fica a sede do Executivo. Neiva Araújo simplifica a famosa “vista grossa” ao interesse pelo lucro.  

“O governo estadual tem uma parcela de responsabilidade, também, no momento em que ele é omisso. O governo federal, por meio do Ibama, é responsável por todo o processo de licenciamento devido à magnitude da obra, mas o governo estadual, assim como o governo municipal [de Porto Velho], deveriam atuar em formas de minimizar esses impactos negativos. Muitas vezes, o governo estadual e municipal também se iludem com as promessas de desenvolvimento e de progresso, que geralmente acabam não se concretizando”, pontuou. 

Quando se chega à etapa final dessas obras, o que temos é um impacto negativo muito maior que o positivo, já não tem mais aquele fluxo de recursos que costumava ter no período da construção e, aí, esses estados e municípios não têm condições de trabalhar para minimizar esses impactos que foram ampliados. Porém, uma realidade que se repete não apenas em Rondônia, mas Brasil afora e diz respeito à falta de pessoal qualificado para dar vazão a essas demandas”, concluiu Araújo. 

Para o advogado Gustavo Caetano, a omissão está intrinsecamente ligada às políticas governamentais da esfera federal. “Infelizmente, a política de invisibilização dessas comunidades, nesse governo, principalmente, esteve de uma forma muito latente, e, na verdade, as violações dos direitos humanos das comunidades ribeirinhas, extrativistas, e indígenas, historicamente, nunca alcançaram um índice tão alto. Outras forças têm que se mobilizar para combater esse tipo de política e proporcionar uma análise democrática, tirando essas pautas da sombra. É extremamente importante a preservação dessas culturas que, infelizmente, ficaram renegadas e praticamente inexistentes”, finalizou. 

 Além de Jirau e Santo Antônio, Rondônia tem outras duas grandes hidrelétricas: a primeira, a Hidrelétrica Samuel, construída no final dos anos 80 sobre o Rio Jamari, no município de Candeias do Jamari, que se destaca por ser considerada o primeiro projeto hidrelétrico do Brasil por meio de  licenciamento ambiental. Outra potência é a Hidrelétrica Rondon II, ao sul do Estado, no município de Pimenta Bueno, única hidrelétrica com licenciamento emitido pela Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental.

Uma vez mais, sem respostas

Procurados pela REVISTA CENARIUM, o Ibama e o Governo de Rondônia não deram esclarecimentos sobre as denúncias de omissão, falta de assistência, além da negligência em estudos ambientais de licenciamento para a instalação dos empreendimentos.