Despejo de famílias em Belém expõe negligência do Estado com direito à moradia

Moradores da 'Ocupação Chico Mendes' foram despejados em reintegração de posse (Composição de Weslley Santos/CENARIUM | Fotos: Reprodução/Redes Sociais @mlb_para @vitorialilas

02 de setembro de 2024

14:09

Fabyo Cruz – Da Cenarium

BELÉM (PA) – Uma operação de reintegração de posse em um prédio da União, localizado no bairro de Nazaré, no Centro de Belém, na última sexta-feira, 30, trouxe à tona uma reflexão crucial: se o direito à moradia é um direito social fundamental garantido pela Constituição, por que tantas pessoas continuam sem acesso a uma habitação digna? O imóvel, chamado pelos ocupantes de “Ocupação Chico Mendes”, estava abandonado há 15 anos, de acordo com informações fornecidas pelos próprios habitantes.

Rodrigo Gondim, um dos advogados voluntários que atuam no caso, informou à CENARIUM que as famílias foram acolhidas temporariamente por um movimento social que atua na defesa de mulheres contra a violência de gênero, em uma casa chamada “Ocupação Rayana Alves”, localizada na mesma região. “O movimento acolheu as famílias de forma solidária, especialmente porque a maioria dos despejados são mulheres que já estavam na ocupação há cerca de cinco meses”, disse.

Membros e apoiadores da Ocupação Chico Mendes (Reprodução/Redes Sociais @mlb_para)

Apesar do apoio emergencial, Gondim ressaltou que o acolhimento é temporário, enquanto se busca uma mesa de mediação com o governo federal para encontrar outros imóveis que possam ser destinados às famílias. “Até agora, essa mediação não aconteceu”, afirmou. Segundo o advogado, o movimento e seus representantes vêm pedindo uma audiência de mediação desde o início do processo, mas os pedidos foram ignorados pela magistrada responsável pelo caso e pelo Ministério Público Federal (MPF).

Gondim criticou a falta de sensibilidade das autoridades e do Judiciário em relação aos conflitos de moradia, e destacou que a remoção foi violenta e causou terror psicológico às famílias. “O despejo não considerou o impacto na vida das pessoas, muitas delas expostas a condições de violência em seus antigos bairros. Além disso, o governo federal, proprietário do imóvel, não cadastrou essas famílias, agravando a situação”, denuncia

O advogado também destacou a importância de exemplos de boas práticas no Judiciário, como a Comissão de Conflitos Agrários do Tribunal de Justiça do Pará (TJPA), que tem avançado na mediação de conflitos de terra e moradia com um olhar mais humanizado. No entanto, ele alertou que é preciso estar atento às influências da especulação imobiliária nas comissões e órgãos que atuam nesses casos. “O TJPA tem acumulado experiências importantes, mas precisamos estar atentos aos agentes envolvidos, inclusive dentro da OAB, para garantir que esses avanços sejam genuínos”, afirma

Rodrigo Gondim defende que o Tribunal Regional Federal (TRF), que determinou o despejo, precisa reavaliar as práticas e avançar na jurisprudência para garantir que o direito à mediação seja respeitado, a fim de minimizar os danos irreparáveis que esses despejos causam às famílias. Ele ressaltou, ainda, o apoio de instituições parceiras, como o Núcleo de Direito à Cidade da Universidade Federal do Pará (UFPA), que acompanha o caso da Ocupação Chico Mendes. “Esperamos que esse caso traga reflexões positivas e impulsione o avanço da mediação nos conflitos por moradia”, conclui.

Falta de políticas habitacionais

A reintegração de posse do dia 30 de agosto reacende o debate sobre o papel do Estado e da sociedade na garantia do direito à moradia. A cientista social e mestra em Sociologia Débora Alves destaca à CENARIUM que, embora o direito à moradia esteja garantido pela Constituição de 1988, o cenário atual é alarmante.

“Em 2024, o déficit habitacional no Brasil chegou a 6,2 milhões de moradias, de acordo com dados recentes do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]. O déficit inclui habitações que não atendem às necessidades básicas, como construções improvisadas e com materiais precários. Além disso, envolve famílias que vivem de aluguel e a coabitação, com adensamento excessivo em uma única unidade habitacional”, explica.

Débora afirma que a crise habitacional é marcada por um complexo jogo de interesses entre os setores público e privado, que impacta diretamente a população vulnerável. Ela destaca que, em cidades como Belém, dominadas pelo setor imobiliário, a pressão expulsa famílias para periferias e áreas distantes do centro urbano.

“A moradia deixou de ser vista como um lar e passou a ser tratada como um bem material, valorizado de forma exorbitante. O Estado, com seus imóveis subutilizados, também agrava essa vulnerabilidade”, assegura Alves.

Débora Alves, cientista social e mestra em sociologia, diz que a crise habitacional é marcada por um complexo jogo de interesses (Reprodução/Arquivo pessoal)

A especialista também alerta para os impactos dos despejos, que afetam a vida das famílias de forma profunda. “Despejos causam impactos físicos e emocionais, afetando a rotina e o bem-estar. Para onde essas pessoas vão? Como vão sobreviver? O Estado precisa responder essas perguntas, especialmente o governo federal, que é dono de muitas propriedades ocupadas por quem está em insegurança habitacional”, destaca.

Para Débora, o Estado deve oferecer alternativas habitacionais dignas, com infraestrutura básica e segurança. “As construções precisam ser seguras, com cômodos suficientes, energia elétrica, água potável e banheiros adequados”, pontua.

A cientista social critica também os modelos habitacionais populares no Brasil, como o programa Minha Casa Minha Vida, que prioriza áreas distantes dos centros urbanos, sem acesso a serviços essenciais como escolas e hospitais. “Essas moradias são pequenas, em terrenos apertados, e as famílias ainda enfrentam problemas estruturais. Muitos nem conseguem acessar o financiamento imobiliário por não conseguir comprovar renda”, explica.

Entre as alternativas propostas por Débora para minimizar o problema, está a ocupação de imóveis devedores de IPTU e propriedades abandonadas do governo federal, para atender às necessidades habitacionais urgentes da população.

Leia na íntegra a nota da Receita Federal

“A Superintendência da Receita Federal na 2ª Região Fiscal (AC, AM, AP, PA, RO e RR) informa que recebeu a posse do prédio em julho deste ano, em cerimônia realizada durante o evento da Caravana Federativa.

Em menos de um mês do recebimento do imóvel, houve a ocupação indevida por pessoas que reivindicam moradia, o que gerou a necessidade de providenciar a reintegração de posse.

Ainda, a Receita Federal informa que o prédio será reformado e ocupado por este órgão, onde será instalado o Centro de Atendimento aos Contribuintes – CAC – Belém/PA”.

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Editado por Adrisa De Góes
Revisado por Gustavo Gilona