‘É uma forma de valorização’, diz antropóloga sobre inclusão de línguas indígenas em linha de smartphone

A nova linha de smartphones da Motorola, Moto G, incluiu na opção de configuração de idiomas, as línguas nheengatu e o kaigang (Reprodução/ Evandro Veiga)

27 de março de 2021

21:03

Jennifer Silva

MANAUS – A gigante do ramo de smartphones Motorola incluiu na opção de configuração de idiomas do aparelho Moto G as línguas nheengatu e kaigang, dos povos indígenas do Brasil. A iniciativa foi realizada em parceria com a Universidade de Campinas (Unicamp) e a novidade deve chegar ainda no primeiro semestre de 2021 ao mercado. A inclusão de línguas indígenas feita pela Motorola pode ser considerada uma forma de incorporação e valorização de idiomas ameaçados de extinção.

Nas configurações do smartphone foram traduzidos mais de 20 mil expressões, frases, comandos, instruções de orientação, formato de data e hora e outras informações. Ambas línguas são indígenas, sendo o nheengatu predominante na bacia do Alto Rio Negro, nos Estados do Amazonas e Roraima; e o kaingang, com extensa difusão no Sul e Sudeste do País. De acordo com a antropóloga Fabiane Vinente, 43, em entrevista à REVISTA CENARIUM neste sábado, 27, a iniciativa é sem precedentes.

“Quando grandes empresas incorporam estas línguas em suas plataformas, isso dá um novo fôlego não apenas para as línguas em si, mas para o sentido de identidade e de pertencimento destes povos, quando se fala em línguas que correm risco de extinção. Considero muito positivo este impacto e com consequências que ainda não podemos mensurar”, comemorou a antropóloga Fabiane Vinente.

Para as crianças

A cientista amazonense chama atenção para outro detalhe. “No Brasil temos atualmente 274 línguas indígenas. É uma riqueza em termos de sociodiversidade. São expressões de culturas que tornam a experiência humana mais complexa. Protegê-las e fortalecê-las é parte de uma cultura de tolerância que temos muito que desenvolver. Quando uma língua ‘morre’ por falta de falantes, são universos de ideias que morrem. Devemos buscar novas formas de incorporar e de valorizar estas línguas e seus praticantes, especialmente as crianças”, destacou Vinente.

“O povo Kaingang tem mais de 45 mil pessoas, a língua é falada por mais de 20 mil pessoas, pelo menos, e é a terceira língua com maior número de falantes no Brasil. E o nheengatu é outra língua disponível nesse smartphone para ser configurado. O nheengatu é uma língua amazônica surgida a partir do século XVII e que se espalhou em grande parte da Amazônia. Hoje é falado em muitas comunidades indígenas no Alto Rio Negro, no Médio e Baixo Amazonas”, explica o pesquisador em Antropologia cultural e de línguas indígenas da Unicamp, Wilmar da Rocha D’Angelis.

Indígenas

Foram oito meses de intensa produção que contou com a ajuda de indígenas representantes de ambos os idiomas. Para Edson Baré, de São Gabriel da Cachoeira, um dos indígenas consultados para a tradução do nheengatu, a ação da empresa é uma vitória para os povos indígenas. Edson defende que mais idiomas indígenas devam ser contemplados e inseridos nos smartphones, e que esta inserção pode ajudar a reduzir preconceito contra os falantes das línguas.

“É muito valioso para nós, uma vitória não só minha, como falante de nheengatu, mas uma vitória de todos os povos tradicionais, porque muitas vezes dizem que a nossa língua não serve, que a gente é minoria, enfim, a gente sofre muito esse preconceito por conta disso. Mas, por meio desse trabalho, demonstramos que temos voz, que temos conhecimento e que somos capazes de contribuir com a inovação deste mundo, ainda mais uma inovação tecnológica que poderá estar sendo utilizada por muitos parentes, falantes de nheengatu”, ponderou Edson Baré.

“Eu espero que possamos ter também outras línguas aqui da região que possam também inspirar as outras empresas a valorizar as línguas indígenas para que possamos entrar nesse mundo virtual que é de suma importância para nós”, defendeu o representante do povo Baré.

Observação

Fabiane Vinente faz uma observação quanto ao sistema gramatical do vocábulo indígena em plataformas digitais, e diz que apesar de ser importante esse tipo de inclusão, é preciso adoção de normas e padrões. “É importante que se diga que as línguas indígenas são línguas orais, ou seja, seus sistemas gramatical e vocabular são passados de geração para geração pela fala. Esta é uma dimensão que sofre alterações quando esta língua passa a ser escrita. É preciso adotar normas e padrões que a língua falada não possui, e vice-versa. Então é importante que estas mídias estejam atentas a estas questões também”, explica a antropóloga.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco), o nheengatu entrou na lista de ameaça de extinção no início de 2014, e o kainkang é listado como definitivamente ameaçado desde 1998.

Editado por: Mencius Melo