Em meio à pandemia, atividade garimpeira ilegal devasta Terra Indígena Yanomami

Garimpo na região do Homoxi, ao lado de pista de pouso comunitária, na Terra Indígena Yanomami, em dezembro de 2020 - (Divulgação)

26 de março de 2021

12:03

Bruno Pacheco – Da Revista Cenarium

MANAUS – Os impactos do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami foram devastadores em 2020. Apesar da pandemia do novo coronavírus, que já matou mais de 300 mil pessoas em todo o Brasil, a atividade garimpeira não cessou e chegou a destruir 500 hectares da floresta amazônica de janeiro a dezembro do ano passado. Os dados são do relatório divulgado nesta quinta-feira, 25, pela Hutukara Associação Yanomami (HAY) e a Associação Wanasseduume Ye’kwana (Seduume). O aumento foi de 30% em relação ao mesmo período de 2019.

Veja também: Garimpeiros ilegais podem ser os principais vetores da Covid-19 em Yanomamis, aponta estudo

O avanço significa uma área equivalente a 500 campos de futebol destruídos. Em 52 páginas, o estudo ‘Cicatrizes na Floresta – Evolução do garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) em 2020’ mostra que a região localizada entre os Estados do Amazonas e Roraima já registrou o total de 2.400 hectares de área desmatada e aponta que a invasão do garimpo ilegal tem cada vez mais se proliferando nas comunidades indígenas, incluindo as isoladas, com a abertura de novas rotas para o interior da floresta.

Acampamento garimpeiro no rio Uraricoera, região de Waikás, TI Yanomami (dezembro de 2020)| Divulgação

“A situação grave de doenças, malária, diarreia, sarampo e o coronavírus, cada vez mais evoluindo, prejudica a vida do povo Yanonami. O problema dos invasores e a pandemia continua. A nossa floresta está sendo destruída e os nossos direitos são violados. A nossa saúde está precária, a educação ruim e isso generaliza um genocídio grave, porque o governo não está cuidado da população brasileira”, desabafa o líder indígena Dário Kopenawa Yanomami, da Associação Hutukara.

O levantamento foi elaborado a partir do registro de imagens de satélite da constelação Planet e Sentinel 1 e as denúncias e relatos de comunidades. As imagens foram colhidas em um sobrevoo do Sistema de Monitoramento do Garimpo Ilegal na Terra Indígena Yanonami, realizado em dezembro de 2020.

Disparada

O estudo mostra que a ação ilegal disparou nas bacias dos rios Mucajaí, Catrimani e Parima, além do rio Uraicoera, que concentra mais da metade de toda área degradada pelo garimpo, com 52%. A intensificação do garimpo, aponta o documento, ocorre em um contexto de perda de capacidade de órgãos públicos de realizar a proteção territorial da Terra Indígena Yanomami, com perda de infraestrutura instalada com o fechamento de Bases de Proteção Etnoambiental (Bapes) para combate ao avanço à atividade a partir de 2015, além da menor frequência e alcance de operações de fiscalização.

Na região de Kayanaú, a proximidade entre posto de saúde, malocas e garimpo em dezembro de 2020 (Divulgação)

A medida em que o desmatamento avança, há também um aumento da pressão sobre as comunidades indígenas que se veem ameaçadas pelos invasores. De acordo com o levantamento, seis regiões da Terra Indígena estão mais afetadas, são elas: Waikás (35% do total da degradação), Kayanau (23%), Aracaçá (17%), Homoxi (7%), Alto Catrimani (4%) e Parima (3%).

Além do garimpo “tatuzão do mutum”, localizado às margens do Uraricoera, que concentrava a maior parte da exploração na região até recentemente, o relatório mostra que surgiram novas três áreas de garimpo próximo das comunidades de Aracaçá, Korekorema e dos Ye’kwana de Waikás.

“Outro ponto a ser destacado é a generalizada utilização de maquinários caros e pesados e o funcionamento de uma extensa e complexa rede logística multimodal (terrestre, fluvial e aérea), que viabiliza a extração ilegal de ouro na Terra Indígena em escala intensa. Esses dados confirmam a análise de que a atividade garimpeira hoje assume características semelhantes à mineração de médio porte, demandando uma organização empresarial, de alto investimento financeiro e complexa organização logística, e alcançando elevado potencial de impacto sobre o meio ambiente e vidas humanas”, diz trecho do relatório.

Reflexos

Em meio ao afrouxamento dos mecanismos de proteção territorial, enfatiza o documento, há a consequente abertura do caminho para a intensificação da atividade garimpeira. A aproximação incomum de algumas lavras e acampamentos de comunidades indígenas foi observada nas regiões de Kayanau, Homoxi e Xitei. O relatório relembra que, historicamente, essa convivência fragiliza a saúde das famílias indígenas, gerando desestruturação econômica e conflitos violentos.

Impacto do garimpo na região de Waikás, Terra Yanomami, em dezembro de 2020|Divulgação

A invasão de garimpeiros é refletida, ainda, na transmissão de doenças como Covid-19 e a malária. Em 2019, um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) e revisada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), chamado “O Impacto da Pandemia em Terra Indígena Yanomami”, já apontava que os garimpeiros eram os principais vetores do novo Coronavírus dentro da terra indígena Yanomami, conforme matéria publicada na REVISTA CENARIUM.

Povos isolados

A “corrida pelo ouro”, um dos materiais preciosos explorados no garimpo ilegal, é estimulado pela crise socioeconômica gerada da pandemia ante à política do governo Bolsonaro a favor da mineração. O documento também chama a atenção para o genocídio para os povos isolados, sobretudo, por conta das doenças que os deixam ainda mais vulneráveis.

Segundo o relatório Cicatrizes na Floresta, o aumento dos casos de malária, por exemplo, está associado ao aumento da degradação florestal, cuja área aberta facilita a proliferação dos mosquitos vetores da doença. “Entre 2014 e 2019, contabilizou-se um aumento de 473% dos casos de malária na TIY, com 30 dos 37 polos base apresentavam alto risco para a doença”, demonstra o documento.

“A malária e as demais doenças infecciosas somou-se à Covid-19, transmitida diretamente por trabalhadores no garimpo que continuaram circulando livremente pela TIY – foram registrados 949 casos da doença até outubro de 2020, com forte incidência em Waikás (26,9% da população), Kayanau (9,5%)13, dois exemplos de área onde a doença se disseminou após o autoisolamento das famílias indígenas ser quebrado pela convivência forçada com garimpeiros”, salienta o relatório.

Mercúcio

“Vale lembrar que a maior intensidade dos impactos do garimpo também está diretamente relacionada às altas taxas de contaminação por mercúrio observada em indivíduos que habitam comunidades nas proximidades a essas áreas, com danos irreversíveis à saúde humana”, reforça o relatório.

O levantamento demonstra, também, que os dados indicam o aumento da pressão sobre os grupos de indígenas em isolamento voluntário na Serra da Estrutura, os Moxihatëtëma, pressionados pela circulação de garimpeiros na região, que fica a poucos quilômetros das comunidades. “Um eventual contato forçado, nesse estágio, arrisca desencadear num trágico episódio de genocídio”, argumenta o relatório.

Destruição provocada pela atividade garimpeira ilegal na Terra Indígena Yanomami(dezembro de 2020)|Divulgação

O estudo conclui que, para barrar a atividade garimpeira ilegal, é necessário que as medidas de proteção territorial da Terra Indígenas Yanonami sejam retomadas integralmente. O relatório sugere uma apresentação urgente de um plano integrado para desocupação total do garimpo, prevendo a atuação de órgãos públicos como a Polícia Federal e o Exército, a retomada de operações periódicas na região para a destruição da infraestrutura clandestina e o bloqueio permanente da logística de abastecimento ao garimpo por via fluvial, aérea ou terrestre.

Além disso, o estudo requer o avanço de investigações sobre as atividades ilícitas relacionadas ao garimpo de ouro, identificando e responsabilizando os principais atores de toda a cadeia do ouro ilegal que a financiam e se beneficiam dela direta ou indiretamente.

Tenha acesso ao documento Cicatrizes na Floresta: Evolução do Garimpo Ilegal Na Ti Yanomami em 2020:

Edição: Alessandra Leite