Especialistas apontam negligências na condução da pandemia com indígenas da Amazônia

Indígenas se abraçam usando máscaras com o slogan "Vidas Indígenas Importam" (Reprodução/Edmar Barros)

30 de abril de 2021

10:04

Marcela Leiros

MANAUS – O último dia da mobilização virtual “Abril Indígena: violação dos direitos e o genocídio no Amazonas” encerra nesta sexta-feira, 30, com a análise de médicos e pesquisadores sobre a negligência com a qual as instituições públicas trataram a saúde indígena durante a pandemia da Covid-19. Com o objetivo de reunir relatos e depoimentos para construir um dossiê que responsabilize instituições e agentes públicos por omissões e descasos na pandemia, o evento iniciou nessa quinta-feira, 29, e encerra nesta sexta com transmissão pelo Youtube.

Para o epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, convidado para o evento, as instituições públicas só começaram a tomar medidas mais eficientes na condução da pandemia recentemente, depois do País ter atingido a marca dos 400 mil mortos pela doença.

“A gente tem visto fazerem isso agora, mas depois de 400 mil mortos. Depois que a CPI está instalada, tal qual a Procuradoria Geral da República, tal qual muitos ministérios públicos e defensorias começam a se mobilizar agora porque está nítida e evidente a ampla negligência sanitária e provavelmente uma condução proposital tanto de populações indígenas quanto não indígenas a uma falsa noção de imunidade coletiva ou imunidade de rebanho pela via natural”, disse o pesquisador.

O epidemiologista Jesem Orellana, da Fiocruz Amazônia, na mobilização virtual (Reprodução/Youtube)

O pesquisador relembrou ainda a exposição dos indígenas a comprimidos de cloroquina nas aldeias que, inclusive, é um dos pontos a serem investigados na CPI da Covid instaurada no Senado. Orellana ainda incluiu a própria Fiocruz entre as instituições que deveriam ter sido mais firmes em posicionamentos

“Nós tivemos em 2020, dentro da Terra Indígena Yanomami, a presença de vários órgãos, Ministério da Defesa e da Saúde, as Forças Armadas, distribuindo e participando direta ou indiretamente da distribuição de milhares de comprimidos de cloroquina. E por mais estranho que vocês achem, por eu ser da Fiocruz, precisamos cobrar esclarecimentos pela produção exacerbada de comprimidos”, destacou Jesem.

Contaminações propositais

As invasões à comunidades indígenas com consenso de instituições públicas também foram pontuadas pelo biólogo e mestre em Ecologia Lucas Ferrante, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ele destacou principalmente a situação das Terras Indígenas Apurinã e Mura, no Amazonas, que estão sendo ameaçadas com a abertura ilegal de ramais por garimpeiros.

“A situação hoje que a gente vê no governo Bolsonaro é grave, inclusive nós acabamos de publicar um estudo recente que mostra como que o governo federal tem ajudado a sucatear e ameaçar os povos indígenas, com varias ações orquestradas que vulnerabilizam esses povos”, destacou o biólogo, que publicou recentemente um artigo sobre o tema.

O biólogo Lucas Ferrante participou do último dia da mobilização virtual (Reprodução/Youtube)

Ferrante lembrou ainda que os invasores estão usando a pandemia para contaminar os indígenas e conquistar o território.

“O governo federal tem se recuso a fazer a consulta aos povos indígenas nesses dois territórios. Já está ocorrendo invasões nessas comunidades, os povos já estão sendo colocados para fora do território neste momento. E os invasores estão usando da pandemia pra contaminar os indígenas e orquestrar esse genocídio pra conquista do território”, disse ainda.

Mobilização virtual

Indígenas, organizações indigenistas de defesa dos direitos humanos se reuniram na mobilização virtual para compartilhar relatos e depoimentos sobre a violação dos direitos e genocídio dos povos tradicionais no Amazonas.

Organizado pela Frente Amazônica de Mobilização em Defesa dos Direitos Indígenas (Fammdi), a mobilização virtual discute tanto a situação dos indígenas perante a pandemia quanto à violência contra os povos. Mortes de indígenas provocadas pela pandemia e as possíveis campanhas que induzem indígenas a recusarem as doses de imunizantes, assim como a crescente perseguição a lideranças indígenas são alguns dos temas debatidos.

De acordo com o mediador e antropólogo indígena Gersem ‘Baniwa’ Luciano, é importante ouvir os depoimentos e experiências dos especialistas para embasar tecnicamente e juridicamente o documento que será construído a partir destes relatos.

“O papel de vocês, a contribuição é fundamental”, disse ele aos convidados. “Esse é um compromissos que estamos assumindo, é parte dos objetivos desse evento. Registrar e ouvir as orientações técnicas e jurídicas para montar esse dossiê e de posse desse dossiê, encaminhar para que sejam tomadas as medidas necessárias. Esse é um dos propósitos: dar consequências às nossas ações. Levar adiante e materializar o que nós temos que fazer”, destacou o antropólogo.

Os testemunhos da mobilização virtual servirão como evidências que deverão embasar um dossiê para responsabilizar instituições e agentes públicos. O documento deverá ser encaminhado para tribunais nacionais e internacionais.

Mortes pela Covid-19

De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), as mortes de indígenas contaminados por Covid-19 aumentaram 800% em 15 dias, durante o mês de abril. Foram nove casos registrados entre os dias 6 e 21, um salto se comparado com o mês de março, que registrou a primeira morte pela doença de uma indígena do povo Borari, de 87 anos, no município de Santarém (PA).

O levantamento foi divulgado na quinta-feira, 24. Segundo a Apib, o número de contaminados pode ser ainda maior levando em conta as subnotificações pelo Governo Federal, que não se aproximam de dados mais precisos. As informações foram colhidas tomando de base os balanços da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e em contato com secretarias estaduais e as próprias lideranças indígenas.

Veja a programação completa: