Machismo no mercado de trabalho: imposição de postura e um ‘código’ de vestimenta para assegurar o respeito

Mesmo com avanços, a luta por respeito e igualdade tem um longo caminho a percorrer (Reprodução/Internet)

25 de abril de 2021

07:04

Priscilla Peixoto

MANAUS – Seja de forma explícita ou velada, o machismo no mercado de trabalho é uma realidade vivida pela maioria das mulheres nas mais variadas profissões. De acordo com uma pesquisa divulgada pelo Instituto Patrícia Galvão, em dezembro de 2020, 40% das mulheres já foram xingadas ou já ouviram gritos no mercado de trabalho contra apenas 13% dos homens que passaram por situação semelhante. A pesquisa apontou ainda um mesmo índice de 40% em relação às mulheres que passam por um supervisionamento excessivo.  

A análise mostrou também que, para 92% dos entrevistados, as mulheres passam por mais situações de constrangimento e assédio no ambiente de trabalho, circunstância que não é tão comum para os homens. A amazonense e consultora empresarial Michelle Guimarães, de 35 anos, sentiu na pele os efeitos do machismo enraizado no ambiente de trabalho.  O caso da consultora, inclusive, é um dos mais comuns e constantemente manifestados nos setores empresariais – ocupar o mesmo posto de trabalho e com salário inferior pelo simples fato de ser mulher.

“Passei por situações que marcaram muito. Lembro de uma vez em que um certo colega de trabalho, com preparação inferior a minha, foi contratado para trabalhar na mesma função que eu, porém, recebendo muito mais. Fui questionar meu chefe que me alegou motivos nada plausíveis. Enfim, passaram-se uns 4 meses, fui demitida e fiquei sabendo que o meu ex-chefe também demitiu uma outra moça da equipe, alegando que o trabalho envolvia viagens e era mais viável para os homens e não ficou nenhuma mulher na equipe”, conta a consultora.

Michelle Guimarães já passou por várias situações de machismo no ambiente de trabalho e deu a volta por cima (Reprodução/Ricardo Oliveira)

Diferenças salariais e regiões

O exemplo de Michelle está inserido no último levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), em 2019, mostrando que no último trimestre daquele ano, os homens ganharam, em média, R$ 2.495,00 e mulheres receberam R$ 1.958,00, rendimento 22% menor.

A análise confirmou que entre os profissionais com ensino superior, o índice de diferença chegava a 38%. Homens com salário médio de R$ 6.292,00 e mulheres, R$ 3.876,00. No quesito chefia e liderança das corporações, a diferença foi de 29%. O sexo feminino recebia até então R$ 29,00 por hora trabalhada, enquanto o masculino recebia R$ 40 em média.

Ainda de acordo com a pesquisa, o Amazonas está entre os Estados da região Norte e Nordeste que apresenta menor desigualdade salarial entre gêneros, com uma de diferença de 5%. Amapá e Alagoas apresentam 6% e o primeiro lugar da região Norte é Roraima com 7%.

Os maiores marcadores de desigualdade foram Estados do eixo Sul, Sudeste e Centro- Oeste, como o Estado de Mato Grosso, somando 30% de diferença salarial, seguido de Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul, ambos com 28%. Todos os dados do levantamento do Dieese tiveram como base Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua, do IBGE.

Manifestações mais comuns no ambiente de trabalho machista

Existem algumas situações que exemplificam ações machistas no cotidiano das grandes corporações, algumas passam despercebidas, outras nem tanto. Dentre as mais comuns, estão:

Piadas de gênero. Colocar a capacidade da colega de trabalho em questão subjugando sua intelectualidade, diminuir o mérito do trabalho realizado só porque foi uma mulher quem o fez e a constante interrupção da fala. Esta última é tão comum que já possui até uma expressão em inglês própria para isso, a chamada “manterrupting” – interromper com constância a fala de uma mulher, provocando constrangimento e desmerecendo a colega de trabalho.

40% das mulheres passam por um supervisionamento excessivo  (Reprodução/Internet)

Assédio

Mas além dos exemplos citados acima e da conhecida desigualdade salarial, outro sofrimento vivido pelas mulheres no ambiente de trabalho é o assédio. Conforme dados registrados pela Secretaria de Segurança Pública do Amazonas (SSP-AM), de janeiro até novembro de 2019, 45 casos de assédio contra mulheres foram registrados em Manaus.

O local onde deveria haver respeito e profissionalismo nem sempre é acolhedor e pode ser palco de momentos constrangedores e até traumatizantes para a vítima. Como também foi o caso da consultora empresarial Michelle Guimarães. Resgatando a lembrança considerada por ela como dolorosa, ela conta que em meio aos negócios, ambiente que ainda é majoritariamente masculino, foi onde ela viveu as situações que mais a machucou.

“Lembro que uma certa vez, em uma reunião de trabalho, fui no intuito profissional de fazer o meu melhor, lá encontrei essa pessoa que também é um colega do ramo e conversamos, só que, em um dado momento, o comportamento dele já ficou diferente. A reunião acabou, fui para casa e nos falamos pelo WhatsApp, mas assuntos profissionais. Foi então que ele começou a me mandar mensagens mais pessoais, logo me esquivei. Poderia ter morrido ali, mas não foi o que aconteceu”, conta a empresária.

De janeiro até novembro de 2019, 45 casos de assédio foram registrados em Manaus (Reprodução/Internet)

Após a insistência do profissional, Michelle conta que o que mais lhe deixou acuada e envergonhada com o episódio foi o machismo expressado não por ele, mas pela companheira do cliente em questão.

“Eu não sei se ela viu as mensagens dele dando em cima de mim. Só sei que recebi um telefonema da companheira dele me ameaçando, afirmando que, se eu não me afastasse do marido dela, eu iria ser espancada por mulheres da ‘sociedade amazonense’. Ou seja, fui vítima de machismo e desrespeito cometido por ele durante o exercer da minha profissão e ainda fui vítima de machismo cometido por outra mulher. O que, para mim, é muito pior perceber que é mais fácil colocar a culpa na outra mulher e que o homem nunca está errado, sendo que, na maioria das vezes, as vítimas somos nós”, lamentou Michelle.

 Vestimenta como “escudo”       

As roupas que usamos costumam, de maneira geral, expressar nosso estilo e até o estado de espírito que estamos em determinados dias. Quando o assunto é compor o look para trabalhar, a maioria das mulheres se veem em um embate frente ao espelho. Encontrar a composição perfeita que passe profissionalismo, sem deixar de perder o gosto pessoal e se sentir bonita e confortável consigo mesma também é um “privilégio” das mulheres.

Para a advogada, consultora e engajada em causas feministas, Amanda Pinheiro, 35 anos, a mulher, ainda que trajando vestes aceitáveis pelo tal padrão imposto pelo mercado, certamente vai passar por alguma situação onde a temática e a culpabilidade vai cair sobre a roupa, pois não há vestimenta adequada e segura para uma mulher no mercado de trabalho, pelo simples fato de nenhum look ou composição neutra conseguir resolver um problema estrutural.

“Mais uma vez vemos que não é questão de traje, mas da idealização do corpo da mulher como objeto de desejo e satisfação sexual. Em diversos casos de assédio sexual e estupro, verifica-se que as roupas utilizadas pelas vítimas estão entre as impostas como roupas discretas ou aceitáveis, dentro de um falso puritanismo. Isso só nos revela que essa visão sobre a mulher como mero objeto de satisfação egocêntrica e sexual pelo gênero masculino, nada tem a ver com o estilo de roupa”, comenta Amanda.

Muitas mulheres buscam na roupa uma forma de auxílio para se impor perante ao machismo do mercado de trabalho (Reprodução/Internet)

Amanda chama atenção em relação ao uso do tradicional terno. Roupa que remete a ideia de fortaleza e masculinidade no mundo do trabalho.

“Um homem de terno é respeitado no ambiente de trabalho. Uma mulher de tailler é ‘aceitável, feminina, respeitável’ (falo por exemplo no exercício da advocacia) e ainda assim é assediada. Se uma mulher se vestir com um terno em corte menos curvilíneo, já é questionada quanto à sexualidade e ainda assim é assediada, ou seja, ficamos em segundo plano até nas roupas, tendo que nos adaptar dentro de uma vestimenta para conseguirmos o mínimo de respeito”, relata.

Para a advogada, vai além da questão de traje, mas da idealização do corpo da mulher como objeto de desejo e satisfação sexual. Ela considera que a roupa ajuda na composição do profissional e tem até um papel de comunicação não verbal na sociedade, porém, somente ele não elimina os valores egocêntricos do patriarcado.

Relações humanas

Os setores das relações humanas (RH) passaram por um processo de mudança e é justamente este departamento que pode auxiliar na transformação de comportamento dentro das empresas. As relações de trabalho mudaram e atitudes abusivas, constrangedoras e que exponham os profissionais ao ridículo, já não passam mais tão batidas como antes.

Nesse contexto, a psicóloga e consultora em Recursos Humanos e de Gestão Estratégica de Pessoas, Adriana Maciel, 38 anos, explica que é possível atenuar essa realidade machista estrutural desde a seleção dos candidatos à ocupação da vaga.

“O primeiro ponto que entendo que tem de ser trabalhado dentro de uma organização que realmente quer promover mudança é a cultura. Desfazer essa cultura do patriarcado enraizada, e assegurar que ela seja respeitada a qualquer custo independente da hierarquia dentro da empresa”, explica a profissional.

Estabelecer a igualdade de gênero, eliminar salários desiguais e promover a equidade desde a seleção são outros fatores destacados por ela que auxiliam no combate à diminuição de ações machistas nas organizações.

Os Recursos Humanos também podem auxiliar para que haja a diminuição do machismo no mercado de trabalho (Reprodução/ Internet)

“Outro ponto de extrema importância e sensibilidade notada pelos profissionais de relações humanas, hoje em dia, é a preocupação, da mulher que é mãe. Uma vez que ela passa por uma entrevista de emprego e se depara com a clássica pergunta: ‘Você tem filhos?’ ‘Com quem eles ficam?’. Isso já é naturalmente uma atitude machista da própria organização que está contratando. Quer dizer que, por eu ter filho, eu não posso trabalhar?”, questiona Adriana.

Ela explica que nos tempos atuais as empresas têm buscado evitar esta pergunta em específico, até porque a criação dos filhos é responsabilidade de ambas partes dentro da relação. Eventos, oficinas, palestras e cursos também são bem-vindos, principalmente se voltados para temáticas de inclusão, diversidade e igualdade de gênero, até porque, de acordo com Adriana, ninguém está totalmente isento de expressar uma atitude machista mesmo que sem querer.

“Isso já vem de tantas gerações, que ninguém está imune. Às vezes até uma colega de trabalho pode ter uma atitude no dia a dia da empresa. Pode ser algo que saiu no automático devido há anos e anos dessa cultura vivida por nós. Por isso, é importante os profissionais estarem abertos a mudanças juntamente com a empresa. É um casamento que leva em consideração o lado profissional, mas respeitando o pessoal, principalmente o das mulheres, que são as principais expostas a todas as situações que já conhecemos”, pondera a psicóloga.

A jornada continua

Mesmo com avanços na luta feminista por respeito e igualdade de direitos, enquanto houver mulheres passando por situações como essa, se faz necessária a luta, o discurso, o debate e o levantar a bandeira pelo respeito.

“Só queremos trabalhar e sermos vistas como profissionais. Nem melhor e nem piores. Eu demorei, mas aprendi a me impor. Durante todos esses anos passando por situações desagradáveis, ouvindo outras mulheres, notei que não nos calamos mais. Hoje adoto códigos que me fazem ser entendida, seja em uma forma de falar mais incisiva, seja em um aperto de mão mais firme. Ainda me chateio muito, pois o certo seria não termos que recorrermos a nada disso. Mas não desisto. Nosso espaço existe e tem que ser ocupado por nós”, finaliza Michelle.

“Só queremos trabalhar e sermos vistas como profissionais” (Reprodução/ Ricardo Oliveira)