‘Meu trabalho me fez dona de mim e não vejo a hora de voltar’, diz Francisca, a ‘Tia da Trufa’ da Ufam

Francisca Queiroz de Lima, 63 anos, carinhosamente chamada de 'tia da trufa' (Ricardo Oliveira/ CENARIUM)

09 de janeiro de 2022

10:01

Priscilla Peixoto – Da Revista Cenarium

MANAUS — “Meu coração é da Ufam. Ali eu trabalho, sou feliz, ajudo quem precisa e me descubro enquanto ser humano a cada trufa que adoça a vida de alguém. Não vejo a hora de voltar”, a frase cheia de carinho e ansiedade é de Francisca Queiroz de Lima, 63 anos, popularmente conhecida como ‘tia da trufa’. Querida pelo corpo docente e discente da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), a vendedora é só expectativa para voltar aos afazeres, após quase dois anos afastada do campus, por conta da pandemia. As atividades, no local, estão previstas para voltarem nesta segunda-feira, 10.

Desde março de 2020 sem vender os doces nas dependências da universidade, dona Francisca, assim como a maioria da população, passou por tempos difíceis por conta do caos na saúde e do isolamento social. De acordo com ela, não havia ânimo para realizar as vendas e, principalmente, em outro local que não fosse o campus universitário. “Até atendi alguns pedidos de encomenda, mas eu espero mesmo é o momento de voltar para o lugar onde vendo feliz e com amor”, conta a trufeira.

Há quase 20 anos vendendo os bombons trufados, a ‘tia da trufa’ passou por diversos locais da cidade, mas nunca deixou a Ufam de lado. A figura carismática, alegre e acolhedora fez dona Francisca Lima ser considerada, pela turma da universidade, uma espécie de ‘patrimônio do lugar’. “Ufam sem tia da trufa não é a mesma coisa; a mesma alegria e doçura”, diz a vendedora.

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Os bombons trufados fazem sucesso na banca da dona Francisca (Ricardo Oliveira/ CENARIUM)

Histórico e memórias

Nascida no município de Coari (363 quilômetros de Manaus), dona Francisca foi casada por quase dez anos e se tornou mãe de três filhos. Antes de se tornar a conhecida ‘tia da trufa’, ela trabalhou em órgãos públicos do município e, ao vir para Manaus, atuou como diarista por algum tempo.

“Um certo dia, um dos meus filhos comentou comigo que a venda de trufa estava em alta e decidi arriscar. Fiz umas 70 unidades e fui vender na Ufam, cheguei lá, elas acabaram em menos de meia hora. Ali eu decidi que queria fazer isso da minha vida. Fui ficando e acabei sendo batizada por um aluno como ‘tia da trufa’ e o nome pegou. Nunca mais quis trabalhar em residência de ninguém, fui tomar conta do meu humilde negócio”, revela a tia.

Ao longo do tempo, a vendedora foi acumulando vivências e memórias guardadas com carinho e afeto por ela. Ela ressalta alguns episódios proporcionados pelo vínculo estabelecido com os universitários da Ufam. Moradora do bairro Coroado, Zona Sul de Manaus, dona Francisca já chegou até mesmo a ceder a casa para alguns alunos se hospedarem em época de programações na universidade.

“Já chegaram alunos de fora (calouros) de Curitiba, São Paulo, Minas Gerais e outros cantos; enfim, hospedei 16 pessoas na minha casa e dividi tudo com eles até irem se ajeitando, arranjando um lugar fixo para ficarem; e não me arrependo”, relembra Francisca.

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‘Tia da Trufa’ é sempre convidada para participar das festas de formatura dos universitários (Reprodução/ arquivo pessoal)

Ela conta que a parceria também acontece quando os jovens estudantes precisam de uma ‘ajudinha urgente’ em meio à correria da faculdade e às dificuldades do cotidiano. “Já teve aluno que veio pedir passagem de ônibus, tirar xerox, comida; pois, muito passam o dia lá, e isso toca no meu coração, eu tiro da minha humilde caixa com gosto. São pessoas que estão ali em busca de uma profissão e em busca de um sonho”, conta a vendedora.

A relação de troca e carinho com os alunos é tão real que a ‘tia da trufa’ afirma participar das formaturas, eventos e, até mesmo, é convidada para posar como modelo vivo para as aulas do curso de Artes.

Ele Não

Outro momento marcante para a vendedora e colecionadora de histórias data de 2018, quando foi às ruas de Manaus para participar da manifestação ‘Mulheres Contra o Fascismo’. De biquíni, corpo pintado e cartaz na mão, a mulher madura e dona das próprias vontades se juntou à mobilização para encarar o preconceito, sexismo, machismo e autoritarismo.

Fatores, inclusive, que a vitimou, logo após ela colocar o ‘corpo para jogo’ de biquíni, na manifestação. Mas as críticas não foram suficientes para abalar e parar a ousada mulher. “Fui atacada até por pessoas fora daqui; meu nome foi parar em sites de todo o Brasil; nem liguei, eu sei de mim e dos meus valores”, diz Francisca.

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‘Tia da Trufa’ em manifestação no Largo São Sebastião, Centro de Manaus (Reprodução/ arquivo pessoal)

Sucesso

A fama de mulher alto-astral e batalhadora saiu do campus universitário e acabou conhecida em toda Manaus. A vendedora famosa já participou, inclusive, de outros trabalhos de artistas locais, como participações em um clipe da cantora Marcia Novo, em uma releitura da canção ‘Subindo nas Paredespopularizada pelo cantor Nunes Filho.

Ela também já foi homenageada pela drag queen Aurora Boreal na canção ‘Sou Forte, Sou do Norte‘, em 2020. Recentemente, foi convidada para compor a figuração do clipe do mais novo trabalho audiovisual da influencer amazonense Ruivinha de Marte, intitulado ‘Bumbum de Grilo‘.

“Fico muito feliz quando sou lembrada, isso para mim, no auge dos meus 63 anos, é incrível. Poder brincar de forma saudável, participar do trabalho dessas pessoas que fomentam o entretenimento e a cultura da nossa cidade, para mim, é uma honra compartilhar destes momentos”, celebra.

“Para sempre a tia da trufa”

Embora conhecida pelos doces trufados, as vendas de dona Francisca não se restringem somente a este único produto. Em sua banca, delícias como alfajor, biscoitos, brigadeiros e dindins também completam o orçamento junto aos bombons recheados, de sabores variados, feitos em casa.

Quando questionada sobre qual o segredo para ter tanta disposição e alegria de viver, a personagem responde em tons de riso. “Eu me libertei duas vezes na vida, a primeira foi quando eu saí de um casamento sofrido, onde fui presa por dez anos, e a segunda vez foi a partir do momento que me dediquei às trufas. Isso é minha vida, minha liberdade e felicidade. Antes de ser a ‘tia da trufa’ eu era uma mulher triste por dentro; e ter esse contato com essa galera jovem, cheia de sonhos, me faz bem e, hoje, eu quero é ser feliz e ganhar meu dinheirinho”, finaliza.

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Dona Francisca exibe com orgulho as trufas que fizeram dela uma figura conhecida em Manaus (Reprodução/ Ricardo Oliveira)