No Dia da Independência, povos indígenas vivem dilema entre cultura e sobrevivência, aponta historiador

Registro mostra indígenas segurando a bandeira do Brasil como forma de luta pela sua independência (Ricardo Oliveira/ Cenarium)

07 de setembro de 2021

15:09

Suzy Figueiredo – Da Cenarium

MANAUS – A independência dos indígenas ainda é uma luta travada pelos povos em pleno século 21. Apesar das suas organizações articularem em defesa dos seus direitos e políticas públicas prioritárias, o futuro indígena teme as ameaças constantemente proferidas por autoridades País afora.

“Éramos independentes e livres no passado. Estávamos sempre em convivência respeitosa com a natureza onde nela reproduzíamos em famílias, assegurados pelas nossas culturas, línguas, costumes e traduções. Com o advento do neoliberalismo, nosso futuro mais ameaçado nos tornou eternos dependentes”, comparou Orlando Melgueiro, 60, da etnia Baré, nascido em Cucui, fronteira com a Colômbia e Venezuela, na “Cabeça do Cachorro”, município de São Gabriel da Cachoeira (a 852 quilômetros de Manaus).

A Constituição Federal, em conformidade ao Art. 231 – Da Ordem Social, garante aos indígenas o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários, porém essa tal “liberdade” ainda é inexistente para os indígenas mesmo com os direitos constitucionais adquiridos. Melgueiro ressalta que os povos perderam muito a cidadania em decorrência de políticas públicas não adquiridas.

“Perdemos muito a nossa cidadania, transformando-nos em subraça com fracasso de políticas públicas a nosso favor, nem na saúde, nem na educação diferenciada e nem na economia alternativa, mesmo tendo uma Constituição entre as mais avançadas do mundo que ajudamos a escrever. Logo, o Estado nos mantém como meros dependentes”, comentou Orlando Melgueiro.

“Não existe democracia para nós, indígenas”, simplificou Icaro Lucas, 28, da etnia Kokama. Para ele, a legislação brasileira ainda não atende aos direitos dos povos indígenas. “Se atendesse, não estávamos lutando pela nossa demarcação”, reivindicou. Embora, as dificuldades enfrentadas por uma nação com mais liberdade para este povo que tem história, Icaro se enobrece com os valores culturais da sua comunidade. “Temos história de alegrias, temos histórias de tristeza, mas com a conivência de várias etnias, temos a nossa paz”, disse Icaro relembrando as lutas e perdas.

Historicidade

Os povos passaram por muitos conflitos, incluindo invasão de terras, e hoje vivenciam a repressão de grandes senhores. “Os indígenas brasileiros, semelhantes aos povos indígenas do continente americano, historicamente, tiveram territórios invadidos pelos colonizadores ibéricos, e hoje, estão espremidos e cercados por fazendeiros, garimpeiros, pecuaristas, sem comida, doentes e com líderes cooptados, famílias dispersadas, um fracasso nas lutas”, explicou Melgueiro.

Apesar de todas as dificuldades que marcam o passado, os indígenas consideram que antes viviam uma vida livre e respeitosa, totalmente divergente do cenário atual. Diante das lutas vividas e vencidas, ainda há o espírito aguerrido de um povo que não perdeu a esperança. “Não perdemos a garra e nem esperança de um dia conquistar a nossa independência mesmo em parceria dos não índios”, disse.

Identidade x visão

“É preciso salientar que o princípio de liberdade de expressão dos povos indígenas está atrelado a sua identidade cultural, ou seja, direitos que só se aperfeiçoam a partir do seu território”, explicou o advogado indígena Eloy Terena, que em 2020 venceu uma causa no Supremo Tribunal Federal (STF) obrigando o Governo Jair Bolsonaro adotar medidas de proteção aos povos indígenas contra a Covid-19.

“Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são invadidos… Dizem que o Brasil foi descoberto; o Brasil não foi descoberto não, Santo Padre. O Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história que realmente precisa ser contada”, frase de Marçal Tupã’i, líder Guarani-Nhandeva, pronunciada durante discurso feito ao Papa João Paulo II, em visita ao Brasil, no ano de 1980.

“Não queremos esse modelo econômico altamente destrutivo e predatório”, frisou a deputada federal Sônia Guajajara (Psol), em post publicado no seu Instagram pelo dia 9 de agosto, em comemoração ao Dia Internacional dos Povos Indígenas – “O objetivo é continuar pressionando o governo federal e o Congresso, que têm discutido diversas leis normativas e outras ferramentas jurídicas que vão na contramão dos direitos indígenas. Conquistas e histórias do movimento estão ameaçadas por flexibilizações propostas por parlamentares e membros do governo”, declarou.

Independência

“Na época da independência não mudou nada”, na concepção do historiador Cleomar Lima. “A gente continuou preso ao Grão-Pará, do ponto de vista político. Do ponto de vista econômico, a gente vivia da extração de produtos da floresta urucum, piaçava, castanha – e essas coisas não davam muita grana, não”.

A mudança só veio a acontecer no período da borracha que, para ele, é visto como o segundo reinado. “A borracha, o período áureo, a glória, a ilusão do Fausto. O Teatro Amazonas, os grandes monumentos arquitetônicos de Manaus são a herança que nós temos daquele momento”, citou o historiador.

Outro período comentado por Cleomar Lima já se figura como modernidade, entretanto, em uma cidade não desenvolvida ou ordenada. “Um outro momento é pós-Zona Franca, mas aí já tem a ver com a globalização, com essas características do capitalismo atual que vive uma modernidade. Mas, Manaus está inserida no contexto como área de montagem. A cidade cresceu muito de uma forma desordenada, descontrolada e a gente paga o preço por isso”, justificou.

Um pouco de história

Lima esclarece que o Pará e o Grão-Pará eram ligados a Portugal e não ao Brasil. “A Independência do Brasil é uma coisa, o Pará era outra coisa. E Dom Pedro não aceitou essa rebeldia. E ele mandou invadir o Pará e morreram cerca de 256 paraenses no porão de um barco. Isso trouxe muita revolta, porque nós, amazônidas, fomos reprimidos violentamente”, disse.

O historiador conta que a Constituição de 1824, do Estado do Grão-Pará, passou a ser província do Grão-Pará. “A gente caiu uma estrela. E isso vai gerar muita revolta por parte da elite local que vai dar origens a cabanagem. Aquele movimento de cabanagem – a sua sementinha é plantada nesse momento dessa conjuntura desagradável que Dom Pedro I criou, e que vai explodir na época regencial. Tentando aqui uma separação realmente muito radical, um movimento em si. Que nasce em Belém, mas se espalha pelo interior da Amazônia”, finalizou.