17 de abril de 2021
11:04
Daniel Viegas
MANAUS – Em um momento em que a anticiência se torna um movimento, ganha representatividade e poder político, a ciência, cada vez mais, se reafirma como o caminho possível para a resistência do conhecimento humano historicamente construído e em construção. Mas, qual a importância da ciência na vida cotidiana das sociedades? Como as pesquisas científicas realizadas na Amazônia podem nos conduzir à reflexão da vida cotidiana e no planeta?
Para tentar responder essas questões, a revista lança a coluna CENARIUM+CIÊNCIAS, que trará aos leitores pesquisas desenvolvidas na Amazônia nas mais diversas áreas do conhecimento, como a Antropologia, Biologia, Ecologia, Direito, Estudos Indígenas, Geografia, História, Museus e Jardins Botânicos, e Saúde.
Manaus e seus territórios pluriétnicos
Para inaugurar essa série, nada mais adequado que uma pesquisa interdisciplinar a partir da Filosofia, a “mãe” das ciências, que permita questionar pré-concepções fruto de ideias produzidas cotidianamente, inclusive pela mídia, que estigmatizam o outro sem qualquer respaldo científico.
É movido pela irresignação típica dos filósofos, acrescido de sua vivência na educação escolar indígena, que o professor Glademir Sales do Santos produziu a tese Territórios pluriétnicos em construção: a proximidade, a poiesis e a práxis dos indígenas em Manaus – AM, aprovada junto aos Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia da Universidade Federal do Amazonas, e que lhe concedeu o título de doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia.
Mas, o que este estudo tem a ver com a nossa vida? Poiesis? Práxis? Territórios pluriétnicos? A resposta está nos dados, nas análises e nas verificações de campo feitas com rigorosa precisão metodológica e em diálogo com teorias de grandes pensadores, que aflora da invisibilidade um Amazonas e uma Manaus pluriétnicos, a despeito de rótulos racistas de “índios fake”, que se tentam impor aos povos indígenas na capital.
Uma trajetória de amor e resistência nas entrelinhas da pesquisa
Fruto da união do povo Karapãna e do povo Kubeo, Manuel Paulino nasceu no rio Marié, um afluente do Alto Rio Negro, em São Gabriel da Cachoeira, em 1942, com uma predestinação dada pelos encantados: caberia a ele unir povos e articular a resistência. Isso não fez sentido ao curumim, até se tornar interno na escola salesiana daquele município.
O confronto com a igreja foi a fagulha para inquietações e lhe abriu os ouvidos às vozes do destino. O guerreiro Karapãna apaixona-se por uma Piratapuia e com ela transpõe os muros do internato. Embrenham-se na floresta e seguem em direção aos seringais, às colheitas de sorva e ao corte da piaçava onde, já como uma família, encontram a escravidão do aviamento. Mas, nos espíritos de Paulino e Otília já não havia outro caminho que não o da liberdade.
O casal se lança nas águas do rio Negro, já com cinco dos oito filhos e a determinação de continuar resistindo em manter sua identidade. Encontram com funcionários do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e recebem uma oferta de trabalho na relação com os outros povos.
O Karapãna passa a trabalhar nas Frentes de Atração Wamiri-Atroari e testemunha a dizimação daquele povo, seus corpos empilhados, enterrados em valas comuns, o cheiro de sangue, da carne putrefata, os gritos das crianças, o desespero das mães. O racismo tornava-se mortífero e Paulino abandona o serviço, sem nem olhar para trás.
Ele e a esposa refazem morada às margens do Tarumã-Açu e do Cuieiras nos anos 1970, de onde mantêm relação com os parentes do Alto Rio Negro e com as mais diversas etnias, cujas trajetórias se cruzam nas ocupações em Manaus, quando então cumpre o destino que lhe foi dado pelos encantados Karapãna.
(*) O colaborador é pesquisador no projeto Nova Cartografia da Amazônia, advogado, procurador do Estado do Amazonas e doutor em Direito.