‘Que a causa indígena seja conhecida, reconhecida e respeitada pelo mundo inteiro’, diz ativista Sônia Guajajara

Sônia Guajajara se tornou uma das principais vozes da luta indígena no mundo. (Divulgação/APIB)

07 de abril de 2021

10:04

João Paulo Guimarães

BELÉM – A CENARIUM entrevistou Sônia Guajajara sobre militância política, candidatura à Presidência da República, pandemia e os impactos sobre os povos indígenas, além da luta contra a omissão do governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sobre a gestão contra Covid-19 direcionada aos Povos Indígenas e na implementação de políticas públicas que garantam aos povos tradicionais o acesso aos direitos.

Sônia Guajajara, de 46 anos, é uma Surara, uma guerreira. Nascida na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão, se tornou uma das principais vozes da luta indígena no mundo. Se formou em Letras, Enfermagem e fez uma Pós-Graduação em Educação Especial. Coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia tem estado com outras lideranças indígenas à frente de mobilizações como a que tenta garantir um plano federal articulado de enfrentamento à Covid-19 entre os povos indígenas.

Em 2017, a cantora norte-americana Alicia Keys convidou Sônia para subir ao palco principal do Rock in Rio, onde a indígena falou sobre demarcação de terras ao som de gritos de “Fora Temer”, presidente do Brasil na época. Em 2018, Sônia participou como candidata à vice-presidente na chapa de Guilherme Boulos para a Presidência da República. Foi a primeira vez em que uma indígena concorreu ao cargo. 

Guajajara em uma das reuniões voltadas à causa indígena antes do período pandêmico. (Divulgação/Apib)

Em 2020, a história de luta pelos direitos dos indígenas levou Sônia a ser eleita uma das pessoas mais influentes da América Latina, reconhecimento que vem de um conjunto de organizações internacionais que compõem o grupo Latinos por la Tierra. Neste reconhecimento, Sonia está junto de cantores como Shakira e Carlos Vives (Colômbia), Alejandro Sanz (Espanha), Emmanuel (México) e Camila Cabello (Cuba), além da atriz Alice Braga (Brasil), do ator Joaquin Phoenix (Porto Rico) e da modelo Gisele Bundchen (Brasil), entre outros nomes que compõem a lista de pessoas que desenvolvem ações sociais e de defesa do meio ambiente.

Confira a entrevista na íntegra:

REVISTA CENARIUM – O Plano de Enfrentamento à Covid-19 para os Povos Indígenas foi uma criação da Apib e modificado pelo governo federal. Alguma das medidas foi efetivamente implementada?

SÔNIA GUAJAJARA – A gente, a Apib, fez o plano por conta da falta de um plano do governo federal para atender os povos indígenas. A gente mobilizou a comunidade nacional e internacional, foram vários especialistas em indígenas e não indígenas, lideranças, e, paralelo ao nosso plano, apresentamos uma ação ao Supremo Tribunal Federal. Então, esse plano do governo não foi vontade própria. Foi uma decisão judicial e, mesmo assim, terminou o ano e o governo não conseguiu implementar o plano. Foram várias versões apresentadas ao Supremo e todas foram rejeitadas. Planos genéricos, totalmente sem organicidade e, paralelo a isso, a gente mobilizou um Projeto de Lei no Congresso e foi aprovada a Lei 14.021 de 2020 na Câmara e no Senado, mas Bolsonaro vetou os principais pontos que constavam no plano. A primeira coisa que ele fez foi negar a água potável aos povos indígenas e isso repercutiu muito. Negou também a distribuição de materiais informativos e negou o acesso aos leitos de UTI. Tudo isso atrapalhou demais a proteção aos povos indígenas e até hoje o governo federal não conseguiu aplicar o plano de enfrentamento.

RC – Como vocês têm buscado reagir, diante da falta de iniciativa do governo federal em implementar plano coordenado visando a proteção dos indígenas?

SG – Nós seguimos articulando recursos financeiros, medidas judiciais, visibilidade por meio de comunicação nas redes sociais para poder denunciar essa falta de atendimento, o que ajudou a prevenir e evitar mais mortes ainda entre os povos indígenas. Na nossa ação no Congresso, a gente já previu a chegada da vacina e já deixou solicitado que, nós indígenas, precisaríamos estar entre os grupos prioritários, considerando que a própria Lei 14.021 já prevê os indígenas entre os grupos mais vulneráveis. Se é grupo vulnerável, precisa estar entre os primeiros a serem vacinados, por conta do risco de eliminação, porque se essas mortes seguem como estão seguindo, então corre um risco muito grande de um genocídio em massa.

RC – Há um risco real de extermínio dos povos indígenas?

SG – Considerando a população e o número de indígenas no Brasil ser menos de 1 milhão, segundo o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], e o número de mortes ser maior entre os indígenas que na população em geral, então corremos risco, sim, de um extermínio em massa. Então, a gente lutou muito para que estivéssemos como prioridade na vacinação. Mesmo assim, Bolsonaro fez a sua seleção. Só garantiu a vacina para indígenas aldeados e, com isso, fica de fora metade da população indígena. São indígenas em contexto urbano que estão fora de áreas demarcadas e fora do Plano Nacional de Vacinação. Isso é outra batalha que travaremos este ano. O governo nada fez para garantir o atendimento à saúde e à proteção dos povos durante a pandemia. Tudo que ele fez foi sob medida judicial, sob pressão da sociedade e mobilização dos movimentos indígenas, para que a gente pudesse amenizar e evitar mais danos. Se não fosse toda essa mobilização, a situação estaria muito mais grave.

A liderança indígena foi uma das responsáveis pelo envio de cilindros de oxigênio para Manaus. (Divulgação/Apib)

RC- Em Manaus, o Parque das Tribos é um bairro indígena que foi entregue à própria sorte pelo município, sem assistência adequada contra a Covid-19. Manaus é uma pequena amostragem do desprezo do Brasil pela população indígena e ancestral por meio dessa corrupção sem medo?

SG – Sim. É uma amostra desses indígenas em contexto urbano. São muitas as etnias morando em áreas urbanas. E essa maioria que vive na metrópole não mora lá porque quis sair da aldeia para ir para cidade. Eles estão lá por uma série de fatores, mas quando eles chegam na cidade, não perdem a sua identidade indígena e origem. Não deixam de ser indígenas, mas o que o governo está fazendo é tratar assim, excluir de qualquer política ou plano do governo federal. Manaus pode ser considerada uma capital de amostragem do que está acontecendo no resto do Brasil, quanto aos indígenas vivendo em situação urbana. Manaus tem uma população de cerca de 30 mil indígenas e todos ali lutando pela sobrevivência. Durante a pandemia, isso ficou muito mais evidente essa marginalização do povo e fora das políticas tanto do governo federal, quanto do governo estadual.

RC – Você foi vacinada. Qual a sensação em finalmente receber a primeira dose?

SG – Fui vacinada. Menino, que sensação boa e diferente. É como ganhar um antídoto de vida. Todo mundo preocupado pensando que vai pegar [Covid-19], né, e toda hora a gente está ali, naquela tensão.  Não pode pegar na mão e nem abraçar ninguém, que já fica tenso. Aí, vem a vacina e dá aquela sensação de liberdade. Como se gente se desacorrentasse. Mas aí vem o pensamento de que a gente é uma no meio de milhões que precisam e aí volta de novo para a luta para garantir que todo mundo tenha acesso e que todos possam ter essa sensação de liberdade também. 

Sônia já foi reconhecida como uma das 100 pessoas mais influentes da América Latina em 2020. (Divulgação/Apib)


RC – A mídia independente e colaborativa ajuda, mas é necessário mais mídia de massa em defesa da causa indígena, como a REVISTA CENARIUM, que atinge um público variado?

SG – Olha, sim. É muito importante e necessário. Quanto maior a visibilidade, maior é a sensibilização e a conscientização das pessoas. Ainda hoje, a pandemia está aí matando milhares de pessoas, continua morrendo muita gente em 24 horas e as pessoas tratam a pandemia como se ela tivesse acabado. Isso dificulta muito mais a conter as mortes, porque a população banalizou as mortes. E o principal responsável por essa flexibilização é o Bolsonaro. Incentiva as aglomerações, incentiva a não usar máscara e agora incentiva as pessoas a não tomarem a vacina, então não há outro culpado. Ele, assim como essa conjuntura política, é o principal responsável por todo esse caos. Então, a imprensa precisa assumir esse papel de colocar no lugar, mostrar a realidade do que está acontecendo. Manaus, por exemplo, está escondida da situação. Teve uma semana de alta que todo mundo acompanhou. Nós e vários coletivos criamos campanhas como a “Respira Manaus” e a “O Pulmão do Mundo está sem Oxigênio”. A gente foi falando, mas o ministro foi para Manaus, apareceu, mas aí acabou. Agora continuamos com as redes alternativas e mídias sociais para continuar a mostrar a realidade. 

RC – Como está a atuação em Manaus?

SG – A Maria Gadu (cantora) está conosco e está lá (em Manaus). É nossa parceira e trabalha conosco há algum tempo. Ela está com a Thelminha, que ganhou o BBB 2020, que está tirando plantão no hospital. A Gadu está articulando apoio, parcerias e levando cilindros de oxigênio, mas cadê? Onde isso está aparecendo? Não está. Ontem mesmo há noite (dia 25 de janeiro) a gente reuniu com Maria Gadue ela disse que distribuíram listas de pessoas que estão precisando de apoio e oxigênio. Ela ficou com 30 pessoas para ligar e articular de entregar oxigênio. Dos 30 que Gadu iria ajudar, 15 pessoas morreram. Ela ligava e dizia que tinha conseguido o oxigênio, mas o familiar avisava que a pessoa já havia falecido.

Sônia é coordenadora-executiva da Apib, e possui formação em Letras, Enfermagem e Pós-Graduação em Educação Especial. (Divulgação/Apib)

RC – Como você vê o agravamento da pandemia em Manaus?

SG – É uma situação caótica ainda que Manaus enfrenta. Isso está se alastrando por demais Estados da Amazônia. Rondônia já está começando a pedir socorro, pedindo para transferir pacientes. O Pará tem vários municípios nessa situação também. Então, ajudar Manaus hoje é conter que isso se alastre para o restante do País. 

RC – Mudando um pouco de assunto, você foi reconhecida como uma das 100 pessoas mais influentes da América Latina em 2020. Qual a importância de um reconhecimento como esse para a luta indígena no mundo?

SG – É excelente. É um reconhecimento fundamental para se continuar exigindo a visibilidade e o respeito pela luta, mas eu acho que, como tem tantas coisas acontecendo, não chega a ter tempo de ver isso como fato comemorativo. A gente espera que isso se configure em ações concretas de ajudar o nosso povo, mudar a realidade e transformar a situação social que as pessoas se encontram hoje. Acho que a gente tem conseguido avançar bastante nesse sentido de reconhecimento da sociedade e dos veículos de comunicação e comunidade internacional. Acredito que as pessoas só vão respeitar e apoiar de maneira geral a causa indígena, se as pessoas conhecerem a realidade. Hoje, o fato do meu nome estar sendo reconhecido por veículos como esse e vários outros, ajuda muito as pessoas despertarem mais para conhecer e se aproximar. É isso que a gente busca. Que a causa indígena seja conhecida, reconhecida e respeitada pelo mundo inteiro!

RC – Já houve alguma conversa com Boulos sobre a Chapa de 2022 para termos Sônia Guajajara como candidata à presidenta do Brasil (risos)?  SG – Conversas (risos), muitas conversas (mais risos). A política muda muito e os cenários mudam demais. Eu mesma estou avaliando como vou chegar a 2022 nesse cenário político. Tem muita gente aqui no Maranhão e no Brasil que me questiona e tem muita sede sobre eu vir como candidata à deputada federal. Tem muita vontade e especulação, mas teve oportunidade em 2018 de compor a chapa de Boulos e topamos. Mas ainda preciso pensar bastante sobre essas mudanças que vêm ocorrendo no quadro político do País para que não haja erro. O Boulos é muito tranquilo, pessoa amiga e preocupado. O que ele diz e mostra é o que ele é no dia a dia.

Edição: Carolina Givoni