Thiago de Mello, 95 anos de notícias e não notícias

Aos 95 anos, com seu frágil andar cambaio, o caboclo suburucu passeia por entre a bruma da memória – e os caminhos se abrem diante de seus passos, iluminados pela tênue luz das estrelas.

07 de março de 2021

11:03

Zemaria Pinto – Poeta e ensaísta

O que dizer de Amadeu Thiago de Mello, que seus leitores não saibam?

Que ele nasceu em Barreirinha, no paraná do Ramos, tributário do Amazonas, em 30 de março de 1926, filho de Pedro e Maria?

Que um dia quis ser médico, estudou até o 5º ano, mas a poesia não permitiu que ele a abandonasse e nem mesmo dividisse a dedicação a ela?

(Será que vem daí o seu amor pelo trajo branco?)

Que foi preso pela ditadura militar e na cela sombria leu uma frase, ecoando a sua própria voz, escrita por quem lá estivera antes: Faz escuro, mas eu canto!?

Que foi exilado pela ditadura militar brasileira e morou no Chile, na França e na Alemanha?

Que no Chile neoliberal do general Pinochet esteve diante de um pelotão de fuzilamento, após o assassinato de Allende?

Que há mais de 40 anos voltou para a floresta, onde construiu casas e poemas em perfeita comunhão com a natureza amazônica?

Que publicou mais de uma dúzia de livros de poesia, além de crônicas e prosa poética, como o belo Arte e ciência de empinar papagaio, que todo menino e menina deviam ler?

Que esses livros foram traduzidos em mais de trinta idiomas, fazendo dele um poeta de reconhecimento universal?

Que generosamente traduziu para o português um sem número de poetas, com destaque ao magnífico Poetas da América de canto castelhano?

Isso tudo e muito mais os seus leitores já sabem.

O que poucos sabem – os que tiveram a graça de prosear com ele, sem medidas de tempo – é que aos 9 anos, Thiago recitava de cor (de coração) o I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias, graças ao estímulo das professoras Clotilde Pinheiro e Aurélia Barros, do remoto Grupo Escolar José Paranaguá. De lá para cá, o dizer poemas em voz alta virou brinquedo.

O que quase ninguém sabe é que seu primeiro poema, aos 12 anos, nasceu de uma tragédia – a morte por afogamento do pequeno Anísio, da mesma idade do poeta:

As incríveis redondilhas brotaram milagrosamente, sem que o menino soubesse ao menos o que era uma redondilha.

E a descoberta do amor, aos 14 anos? Só quem sabe é a Lenize, moradora da Praça da Saudade, que descobriu essa paixão platônica ao ler uma crônica do poeta, muitos anos depois, quando ambos moravam no Rio de Janeiro.

Vi meu amigo morrer,

afundando no perau.

O que vai acontecer?

Aos 15 anos, quando, pássaro menino, migrou para o Rio – ele o disse só a mim – Thiago levava consigo três princípios, que o iluminam ainda hoje, mesmo quando nuvens de chumbo ameaçam apagar o sol da pátria amada: “a descoberta de que o homem é capaz de criar a beleza com o poder da criação artística; a descoberta de que o amor é possível; e a certeza de que a amizade é a mais bela forma de amor”.

Então, já que não há o que falar do poeta, falemos de sua poesia.

A obra poética de Thiago de Mello é diversa, original e superlativa.

Quando ele aparece, no inícios dos anos 1950, é saudado por algumas das mais altas vozes literárias da época: Alceu de Amoroso Lima, Gilberto Freyre, Otto Maria Carpeaux, José Lins do Rego, Manuel Bandeira.

Sua poesia então era intimista, questionadora do estar-no-mundo e do papel do poeta e da poesia num mundo convulsionado.

Nos anos 1960 e 1970, Thiago produz a mais lírica poesia política, que tem o seu zênite nos Estatutos do Homem. Ele denunciava a ditadura brasileira para o mundo e nos ensinava a doce canção da liberdade.

A partir dos anos 1980, sua poesia passa por outra mudança profunda: o poeta reflete sobre o meio ambiente e a ação nefasta do homem para o futuro da humanidade.

Às vésperas dos 90 anos, Thiago de Mello nos doa um livroAcerto de contas – que é muito mais que o legado de um poeta tocado pelo gênio: trata-se do inventário de uma vida, onde todos os temas anteriores retornam com força e luz, dando ênfase à palavra mais cara ao poeta, que paira por toda a sua obra: esperança.

Aos 95 anos, com seu frágil andar cambaio, o caboclo suburucu passeia por entre a bruma da memória – e os caminhos se abrem diante de seus passos, iluminados pela tênue luz das estrelas.

Zemaria Pinto

O escritor tem 22 livros publicados em gêneros diversos, tais como poesia, teatro, ficção infantojuvenil, didáticos e ensaios sobre literatura (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Especialista em Literatura Brasileira, é mestre em Estudos Literários, com a dissertação A invenção do Expressionismo em Augusto dos Anjos. Sua estreia em livro deu-se na antologia Marupiara, em 1988, organizada por Anibal Beça e André Gatti, que o relacionaram entre os poetas da “geração pós-madrugada”.

Tem participação em mais de uma dezena de antologias poéticas, além de ensaios publicados em coletâneas e diversas inserções em arquivos oficiais de congressos.

O escritor tem 22 livros publicados em gêneros diversos: poesia, teatro, ficção infantojuvenil, didáticos e ensaios sobre literatura. Dramaturgo, tem seis peças encenadas.  

Zemaria Pinto organizou, para a Academia Amazonense de Letras, os livros A Uiara & outros poemas, de Octavio Sarmento (2007), e Águas do dia e da noite, estudos sobre a poesia, a ficção e a ensaística de Elson Farias (2019).