Festival de Parintins deixa personagens negros sem protagonismo na disputa; entenda

Pai Francisco e Mãe Catirina ao lado dos bois Caprichoso e Garantido (Composição de Wesley Santos/CENARIUM)

30 de junho de 2024

16:06

Ana Pastana – Da Cenarium

MANAUS (AM) – Com o objetivo de exaltar a diversidade cultural dos povos da Amazônia, o Festival Folclórico de Parintins, município a 369 quilômetros de Manaus, possui no regulamento 21 itens a serem julgados nas apresentações dos bumbás Caprichoso e Garantido. Em 57 anos de realização da festa, que possui raízes que remontam às populações afro-brasileiras, personagens negros são retratados como coadjuvantes, a exemplo de Pai Francisco e Mãe Catirina, figuras que integram o “Auto do Boi”, mas não são promovidas como elementos para a avaliação dos jurados, apesar de indispensáveis.

No espetáculo, inspirado no Bumba-meu-boi do Maranhão, a Catirina é uma mulher negra, grávida, que tem o desejo de comer a língua do boi preferido do dono da fazenda, conhecido como amo do boi. Francisco, esposo dela, que trabalha para o fazendeiro, mata o animal parar realizar o desejo da esposa. O dono da fazenda, então, busca um pajé para ressuscitar o boi. É neste contexto que o casal negro participa da apresentação cultural.

Mãe Catirina e Pai Francisco (Ilustração/Ricardo Pontes)

A discussão sobre o tema é complexa e envolve a valorização das raízes afro da festa e a necessidade de evitar práticas racistas. Na edição de 2019 do festival, os jurados emitiram uma carta oficial solicitando o fim do “blackface” – prática que consiste na pintura da pele com tinta escura – na caracterização do Pai Francisco e da Mãe Catirina. Com a polêmica, os atores que representavam o casal passaram a ser verdadeiramente negros.

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Para a a advogada e jornalista, especialista em africanidades e ativista do movimento negro, Luciana Santos, os temas defendidos na arena do Bumbódromo pelos bumbás de Parintins precisam estar alinhados com a pauta antirracista.

“Se os bois dizem ter esse comprometimento antirracista, eles precisam realmente modificar a forma como as narrativas são contadas na arena, tem que de fato ter um posicionamento antirracista, não basta ser da boca pra fora com o objetivo mercadológico”, protesta Santos.

Casais de Pai Francisco e Mãe Catirina interpretados por pessoas negras após 2019 (Fotos: Divulgação/Arte: William Vasco/Globo)

A ativista também sugere o questionamento: “Vale a pena pensar também na importância dada as figuras do auto do boi. Será que a imagem da sinhazinha é mais importante do que de Catirina, Pai Francisco, do padre? São elementos que são invisibizados. Até bem pouco tempo tínhamos black face. Claro que tem uma visão mercadologica capitalista em ressaltar a branca com corpo padrão em detrimento de outras figuras”, pontua.

Evolução distorcida

Sobre o tema, o escritor e ativista Juarez Silva, que escreve para o Amazônia Real destaca que “embora os indígenas também façam parte da celebração, sua participação se limita à perseguição de Pai Francisco e ao ritual de ressuscitação do boi, deixando claro que, originalmente, a festa não era centrada na temática indígena”. Com o tempo, as tradições foram adaptadas e modificadas para incluir novas narrativas e representações. No entanto, para ele, essa evolução levou a uma certa “distorção”, culminando na decisão de classificar a festa como “cabocla e indígena”, e renegando a influência negra.

Em uma entrevista à CENARIUM nesse sábado, 29, o sociólogo Luiz Antônio de Souza afirmou que é necessário ter atenção ao processo de “embranquecimento” do boi, e do enredo do festival, que vem acontecendo desde a adaptação do Bumba-meu-boi.

“O Boi, nas primeiras manifestações, era uma história com elementos negros muito bem demarcados, muito contundentes. O Pai Francisco e a Mãe Catirina eram negros e tinham muito mais presença. A sinhazinha, por exemplo, não existia na história original. Então, você vê um processo de mudança do boi, o boi vai sofrendo um processo de embranquecimento, até o ponto de desaparecer os elementos negros do boi”, pontua.

O sociólogo Luiz Antônio de Souza (Divulgação)
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