A capa que a visibilidade trans merece: na passarela da CENARIUM, Ariadna Arantes

Em respeito à pluralidade e representatividade, a REVISTA CENARIUM faz uma singela homenagem não só para Ariadna, mas para toda a comunidade "T" (Reprodução/Instagram)

29 de janeiro de 2022

17:01

Priscilla Peixoto — Da Revista Cenarium

MANAUS — Em 29 de janeiro, é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans. A data remete ao ano de 2004, quando um grupo de ativistas da comunidade “T” manifestou o incentivo ao respeito entre as pessoas de diferentes gêneros. Neste contexto, há pouco mais de uma semana, o mês da visibilidade foi escolhido pela transexual Ariadna Arantes (primeira mulher trans a participar de um reality show no Brasil), para relembrar, nas redes sociais, que a palavra respeito foi o que faltou ao ser vítima de uma manchete transfóbica, em um jornal, há 11 anos. Em respeito à pluralidade e representatividade, a CENARIUM faz uma singela homenagem não só para Ariadna, mas para toda a comunidade “T” que todos os dias luta por espaço e respeito na sociedade.

Ao relembrar a exposição sofrida, a modelo e ex-sister do programa Big Brother Brasil (11ª temporada) compartilha o sentimento de humilhação vivido. A edição de 18 de janeiro de 2011 do jornal Meia Hora, intitulada “Ariadna’s Coiffeur – Corto cabelo e pinto. Entrada pela frente e pelos fundos”, estampava a capa com a foto de Ariadna acompanhada de mais frases transfóbicas como: “Aí, colega, apara a franjinha e pica atrás, por favor”, referindo-se à cirurgia de resignação sexual da ex-BBB.

Capa em homenagem ao ‘Dia da Visibilidade Trans’ (Arte/ Isabelle Chaves/ CENARIUM)

“No dia que saiu essa capa de jornal, eu passei o dia chorando. Não quis fazer nada. Me senti um lixo. Me senti a menor pessoa desse mundo. Me questionei: o que fiz da minha vida? Ninguém mais vai me respeitar”, relembrou recentemente a trans, na rede social Instagram, onde também se refere à eliminação do programa global, fazendo um comparativo da fase vivida em 2011, com os tempos atuais.

“Quando vocês falarem: ‘Ariadna escondeu que era trans, por isso foi eliminada’. Lembrem-se dessa capa de jornal. Porque eu tentei me preservar, me defender, por me sentir coagida. Minha vida, até hoje, é resumida em uma semana de participação (…), ninguém segurou minha mão e eu enfrentei tudo isso sozinha. E que bom que estamos em 2022 e tudo está um pouco menos pior, eu acho, né? O que eu fiz para ser eliminada? Apenas era eu”, finaliza Ariadna.

Pedidos de desculpas, lentas transformações

Logo após a postagem de Ariadna repercutir, o jornal Meia Hora também postou uma publicação em forma de retratação pela capa de 2011. “Pedimos perdão, não apenas a Ariadna, como a todas e todos agredidos por essa capa de 11 anos atrás. Não tem graça, assim como outras piadas infelizes que, no passado, eram corriqueiras, embora causassem sofrimento. Além de nos envergonhar, não reflete a nossa atual linha editorial”, postou o perfil da empresa na rede social Twitter. 

Na leitura do psicólogo e doutor em educação, especializado em gênero e educação sexual no âmbito educacional, a união das “vozes erguidas” em prol da população LGBTQIA+, o fortalecimento da sigla e a própria comunidade “T” mais ativa, resultou em uma certa mudança de comportamento da sociedade, embora ainda haja expressivos números de casos de homolesbotransfobia.

Pedidos de desculpas do Jornal Meia Hora (Reprodução/ Twitter)

“Temos que pensar que neste período de tempo tivemos avanços. Toda uma conjuntura de governos de esquerdas, com Lula e Dilma que, de alguma forma, foram mais progressistas em relação à pauta em questão. E, neste cenário de disputas, idas, vindas, ganhos e retrocessos, a gente teve também a própria questão da visibilidade e Ariadna contribui nesse sentido. A postagem dela trouxe à tona um ponto que serve para a gente refletir de como o próprio BBB, 11 anos depois, repercute a participação da Linn da Quebrada de uma forma diferente; percebemos este arejar”, avalia Adan.

Ferramentas de apoio

Adan ressalta que, atualmente, Ariadna poderia contar com ferramentas de apoios não oferecidos na época, como a criminalização da homofobia como forma de racismo, decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em junho de 2019, somente oito anos após o vexame vivido pela modelo. A decisão que torna a homofobia crime é inafiançável e imprescritível, podendo o autor pegar como pena três anos de reclusão e multa.

Outro ponto de destaque é a atuação mais intensa da população “T” e, principalmente, o trabalho desenvolvido pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), com os relatórios anuais de violência contra a população trans, que mostram a dura realidade dessas pessoas e levam a sociedade a fazer uma reflexão e autocrítica.

“Precisamos ter o entendimento de que pessoas são pessoas, nunca devendo perder a dignidade delas, não importando o gênero. Esses pontos específicos, como o STF e a Antra, tiveram um grande papel de, praticamente, empurrar a sociedade para rever suas concepções e os próprios jornais, como no caso da Ariadna, tiveram que rever essa opção, entre manter uma postura retrógrada ou entender a importância dos direitos humanos e da diversidade. Ainda que não possamos ver, subjetivamente, a intenção do editorial, em se retratar com a Ariadna, é importante ver esse movimento de autocrítica”, considera o psicólogo.

Mesmo com uma leve mudança de postura em relação à visibilidade trans e outros integrantes da comunidade LGBTQIA+, Adan atenta para a volta de um período delicado, devido a setores mais conservadores. “É delicado, pois eles perceberam que houve avanço e visibilidade, eles fazem um movimento de contraofensivas e ocupam cargos estratégicos, inclusive, no legislativo e, muitas vezes, pauta o retrocesso, mas a liberdade é uma luta constante e a gente segue firme”, afirma.

Ariadna Arantes (Reprodução/ Instagram)

Dados da transfobia

Em 2021, segundo dados do relatório ‘Assassinatos e Violências Contra Travestis e Transexuais Brasileiras, realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), com apoio de universidades como a Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), Federal de São Paulo (Unifesp) e Federal de Minas Gerais (UFMG), foram registrados 140 assassinatos de pessoas trans no Brasil.

De acordo com o documento, deste total, 135 foram vítimas travestis e mulheres transexuais e cinco foram homens trans. Embora, abaixo do que fora registrado em 2020, quando 175 pessoas trans foram assassinadas, o Brasil ainda ocupa o cargo de País mais perigoso para uma pessoa trans viver, sendo pelo 13º ano consecutivo, o lugar que mais mata trans no mundo.

Lugar de fala

A manauara Louise Costa, de 28 anos, integrante da comunidade trans, é antenada nas redes sociais e nas questões que envolvem os anseios da população LGBTQIA+. Apesar de jovem, a transexual também já passou por inúmeras situações vexatórias. Quando questionada qual o sentimento em relação ao desabafo de Ariadna que, mesmo tantos anos depois, ainda parece machucar a dignidade da modelo, Louise responde com propriedade.

“Ver algo assim é horrível, porque é uma coisa que a gente sente na pele. Entendo, exatamente, o que ela sentiu e não desejo isso para ninguém”, diz Louise lembrando que, anteriormente, a maioria das vítimas sofria caladas e com medo. “Quando isso ocorreu, a única coisa que uma trans poderia fazer era colocar a cabeça no travesseiro e chorar como ela fez”, conta Louise.

A trans diz acreditar que, hoje em dia, poucos veículos fariam uma capa com o mesmo teor, mas para Louise a mudança de postura não se deve tanto ao fato da consciência de que todos merecem respeito, mas pelo fato de que, hoje, ao contrário daquela época, a lei já oferta dispositivos em prol da população LGBTQIA+.

“Por mais que pareça que, hoje, tenhamos aliados, acredito que ainda é uma questão muito maquiada e velada. Vejo, como exemplo, algumas mídias e pessoas que nos procuram só no mês da visibilidade, e não deveria ser assim. Existimos o ano todo. Somos muito mais que dados e transfobias. Que sejamos mais valorizadas. Que eu e outras manas trans e travestis se reconectem sempre, pois, querendo ou não, somos nós, por nós mesmas; é sobre resistir. Acredito que a capa que ela e todas as manas merecem, na verdade, é RESPEITO E REPRESENTATIVIDADE e que nunca mais este tipo de manchete horrenda aconteça. Sigamos a passos curtos; o importante é não parar. E viva a todas nós!”