A visão distorcida do indígena ao longo de décadas na produção musical brasileira

Retratado ora como bobo, ora como idílico, o indígena ocupa um capítulo à parte na história da música brasileira (Reprodução/Gov.br)

19 de abril de 2023

12:04

Mencius Melo – Da Agência Amazônia

MANAUS – O Dia dos Povos Indígenas, comemorado nesta quarta-feira, 19 de abril, de simples data para recordar os povos originários do Brasil, passou a simbolizar dia de luta, resistência e consciência. Por conta dessa releitura, a AGÊNCIA AMAZÔNIA apresenta aos leitores uma reportagem sobre a visão e construção da imagem do indígena na arte musical produzida no Brasil. De marchinhas de Carnaval, passando por canções infantis ou em manifestos solidários, muitos artistas brasileiros erraram a mão e produziram obras que ajudaram a idiotizar os indígenas no imaginário popular. Veja algumas delas:

“Ê, ê, ê, ê, ê, Índio quer apito, se não der, pau vai comer! Lá no bananal mulher de branco levou pra índio colar esquisito, índio viu presente mais bonito, eu não quer colar! Índio quer apito!” os versos de Haroldo Lobo e Milton de Oliveira, na marchinha de 1961, nasceu de uma piada maliciosa sobre a primeira dama Sarah Kubitschek. Independente do fato ser verídico ou não, a forma como o “personagem índio” se expressa em um português truncado faz com que ele seja uma caricatura matuta e abobalhada.

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No clipe de ‘Vamos Brincar de Índio’, Xuxa usa um arremedo de cocar e assessórios que imitam a plumagem indígena (Reprodução/Internet)

No período de seu reinado como a “Rainha dos Baixinhos”, Xuxa Meneghel também resolveu homenagear os povos originários. Em “Vamos Brincar de Índio”, de 1988, ela decanta candidamente um ser passivo, dócil, quase um Shih Tzu. “Índio não faz mais lutas, índio não faz guerra, índio já foi um dia
O dono dessa terra, índio ficou sozinho, índio querer carinho, índio querer de volta a sua paz…”
. A despeito de todo mundo querer carinho, os povos indígenas do Brasil estão em pé de guerra e faz muito tempo.

Idílio

Em outras obras é possível encontrar a visão dos indígenas em um estado de idílio, foi assim que Rita Lee os retratou na música “Baila Comigo”, de 1980. Na letra, Lee trafega entre o etéreo sublimado e o preconceito estrutural quase despercebido, já que o indígena é um ser “que não faz nada”. É a velha visão do preguiçoso. “Se Deus quiser, um dia eu quero ser índio, viver pelado, pintado de verde, num eterno domingo, ser um bicho preguiça, espantar turista e tomar banho de sol, banho de sol… Baila comigo, como se baila na tribo…”, cantou ela.

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Contribuição

Para o músico e doutor em antropologia Agenor Vasconcelos, os estereótipos e romantismos ajudaram a criar um cenário imagético, mas, mesmo assim, a cultura indígena resistiu e serviu de fonte. “Essas produções reproduzem uma visão estereotipada ou romantizada do indígena. Por outro lado, há uma certa ironia, pois a cultura indígena continua sendo fonte de inspiração. Ela foi usada por muitos compositores de todos os estilos, inclusive os clássicos, como, por exemplo, ‘O Guarani’, de Carlos Gomes, que é a abertura da ‘Voz do Brasil’ e até hoje pouco se reconheceu essa contribuição”, protestou.

O músico e antropólogo Agenor Vasconcelos chamou atenção para estereótipos e romantizações (Reprodução/Redes Sociais)

O artista e antropólogo observa que mesmo atacados ou distorcidos, os povos indígenas e a cultura indígena dão ao Brasil sinais de resistência na política e principalmente nas artes. Ele cita artistas que vêm se destacando. “Nos dias de hoje, isso vem sendo reparado e temos cantoras indígenas de renome internacional em nosso Estado, como, por exemplo, Djuena Tikuna. Mas é verdade que muitas das ideias propagadas pelo senso comum sobre os povos indígenas são equivocadas”, criticou.

Acerto

Um acerto digno de registro é “Um Índio”, de Caetano Veloso, música de 1976. Na obra, o mestre da Música Popular Brasileira (MPB) enaltece o indígena em meio a uma letra carregada de mistérios. “Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante de uma estrela que virá numa velocidade estonteante e pousará no coração do Hemisfério Sul na América, num claro instante, depois de exterminada a última nação indígena e o espírito dos pássaros das fontes de água límpida mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias…”.

Na contramão das obras equivocadas, Caetano Veloso acertou em cheio em ‘Um Índio’, composta em 1976 (Reprodução/Internet)

Ao final de sua fala, o antropólogo e musico da cena amazonense, faz uma alerta para o risco de ser cristalizar imagens que em muito podem contribuir para a edificação de preconceitos. Não à toa, os indígenas sofrem uma série de resistências na sociedade brasileira. O melhor, segundo o cientista, é evitar construir imagens distorcidas. “Isso é bem sério, essas visões estereotipadas compõem o imaginário da sociedade nacional e contribuem para um ambiente não acolhedor e excludente aos povos indígenas”, finalizou Agenor Vasconcelos.