‘Amazônia Maranhense’ em risco: avanço do desmatamento ameaça povos originários

Apreensão de madeira ilegal na Amazônia maranhense em 2018. (CIMI Maranhão)

03 de setembro de 2023

13:09

Camila Simões, Maria Regina Telles e Monalisa Coelho – Especial para Agência Amazônia****

SÃO LUÍS (MA) – “A cultura indígena pode ser extinta, quando não houver mais floresta e os animais, aí a nossa cultura morre. Ninguém vai nos intimidar, nós não vamos recuar, vamos lutar até o fim”, diz uma das lideranças da Terra Indígena (TI) Arariboia, no Estado do Maranhão, Amazônia Legal Brasileira (ALB). Por motivo de segurança, não identificaremos fontes diretamente de territórios ameaçados.

A TI Arariboia é a segunda maior do Maranhão com, aproximadamente, 15 mil indígenas vivendo em uma área de cerca de 413 mil hectares¹, abrangendo seis municípios: Arame, Amarante, Bom Jesus das Selvas, Buriticupu, Grajaú e Santa Luzia. Mesmo demarcado, homologado e registrado, o território é alvo de ações de invasores, entre eles, caçadores, fazendeiros; de atividade ilegal madeireira e, ainda, do arrendamento de pastos.

Um dos líderes da TI Arariboia — que não foi identificado para a sua proteção, já que está entre os integrantes ameaçados da comunidade tradicional — fala ainda que a recorrente invasão, em especial aquela relacionada à atividade madeireira ilegal, traz destruição do ambiente natural local e gera inúmeros conflitos internos. Segundo ele, o que quer com a sua luta é preservar a terra onde vive, a família e a continuidade de tudo que visa preservar.

Quem traz luz, também, a esse aspecto é Marcilene Guajajara, da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão (Coapima). A organização, que existe desde 2003, recebe denúncias periódicas sobre a exploração ilegal de madeira no Estado e elas vêm, em geral, dos municípios Amarante e Arame. Ela salienta que a vida dos indígenas vem sendo afetada pelo desmatamento acelerado e por conflitos diretos, que põem em vulnerabilidade, também, a saúde dessa população.

Hoje, a maior parte desse povo vive ameaçado dentro dos territórios. Isso causa muito medo. As pessoas já não têm tanta liberdade de viver, como antes”, diz Marcilene.

Como estratégia de sobrevivência e cuidado com os territórios, a liderança da TI Arariboia relata que o monitoramento constante dos limites dos territórios é necessário. Quando há operações maiores, como a própria verificação de denúncias, entre outros tipos de fiscalização, há o apoio das polícias Federal e Civil, da Força Nacional [de Segurança Pública] e ainda do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Em resposta a um pedido de informações via Lei de Acesso à Informação (LAI), do Brasil, o Ibama afirma que há diversos grupos criminosos envolvidos em fraudes na cadeia florestal e que compram madeiras de origem ilegal. Estes mesmos grupos são responsáveis, muitas vezes, por financiarem o corte da madeira e acobertarem a respectiva origem, por meio de créditos virtuais.

De modo geral, a extração de madeira ilegal causa impactos ambientais e sociais ao ter como resultado o esvaziamento da fauna associada a esses ambientes, o prejuízo direto às nascentes de rios e aos respectivos percursos, impactando, então, na soberania alimentar dos povos mais conectados à vida junto à natureza. É o que afirma Gilderlan Rodrigues, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Ainda segundo ele, “a extração ilegal de madeira atinge todo um conjunto social dos povos indígenas”.

Panorama do desmatamento

O bioma amazônico abrange nove países na América Latina, 60% dele está localizado na Região Norte do Brasil, com cerca de 26% da flora conhecida do País, entre vegetação nativa, cultivada e naturalizada². São mais de 13 mil espécies não lenhosas e lenhosas. Todas de alto valor para a vida humana e exploradas, principalmente, por meio de um mercado mundial que parece ligar pouco para origem e, menos ainda, para quem é afetado no processo.

Parte da Amazônia Maranhense. (Divulgação/Goeldi)

Em site oficial, o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) afirma estar promovendo ações para a conservação da biodiversidade e aproveitamento das potencialidades no campo do desenvolvimento sustentável da região. São medidas que incluem “projetos para a gestão sustentável da paisagem, incluindo adequação ambiental, consolidação de unidades de conservação, cadeias produtivas sustentáveis e inovadoras, recuperação de áreas degradadas e pagamento por serviços ambientais”.

Uma forma de tentar acompanhar informações sobre o desmatamento na região, por exemplo, é por meio do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes)³, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), unidade vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) do Brasil. A plataforma Prodes mostra que o Maranhão é o quinto Estado da ALB em taxa de desmatamento acumulado, desde o início do programa, em 1988, até 2022, com mais de 26 mil quilômetros quadrados desmatados.

Há, ainda, um sistema de alertas de desmatamento de vegetação nativa com imagens de alta resolução, o MapBiomas Alerta4. A plataforma permite observar alertas de detecção de desmatamento de vegetação lenhosa, desde janeiro de 2019. Desde então e nessas condições, quase 6,5 milhões de hectares foram desmatados no País todo, com destaque para a região amazônica, representando 58% do total desmatado. Entre os Estados da região, o Maranhão ocupa o quarto lugar no ranking dentre os que mais perderam esse tipo de vegetação, atrás do Amazonas (3º), Mato Grosso (2º) e Pará (1º). É também, no Maranhão, onde se encontra o município Alto da Parnaíba, que apresentou maior velocidade na extração de vegetação nativa, chegando a 239,1 hectares de áreas afetadas por dia.

A partir desse cenário, mais de 90% do desmatamento que ocorre na Amazônia apresenta sinais de ilegalidade. É o que indica a organização de análise de políticas públicas e finanças Climate Policy Initiative (CPI), em parceria com a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)5. A destruição da floresta está conectada, de modo geral, às atividades ilícitas, como a mineração ilegal, a grilagem de terras e a extração ilegal de madeira. Isso tem significado, para a região, uma série de práticas criminosas associadas ao aumento das violências.

Ainda segundo a organização de pesquisa e elaboração de políticas públicas, esse cenário pode contribuir para o afastamento de mercados formais, além de representar risco para os habitantes da região amazônica brasileira. Estamos falando de populações tradicionais, que buscam reconhecimento e vêm sendo, sistematicamente, desmobilizadas em seus territórios.

A plataforma “De Olho nos Ruralistas” apresenta o resultado de pesquisa sobre o desmatamento em todo o País, com base nas multas aplicadas pelo Ibama, traçando um histórico de infrações ambientais num intervalo de tempo de 25 anos (de 1995 a 2020). Segundo o levantamento, a maioria das autuações milionárias ocorreu na Amazônia, o que surpreende são as datas relacionadas ao Maranhão.

As multas ocorreram de abril de 2005 a dezembro de 2006, mas, como levantado e colocado, o Estado figura entre os que mais desmatam e com velocidades recordes. Até o fechamento desta reportagem, não foi possível ter acesso às atualizações nessa direção.

A Secretaria de Estado do Meio Ambiente e Recursos Naturais do Maranhão (Sema) informou que — de abril de 2022 a junho de 2023 — foram apreendidos, aproximadamente, 760 metros cúbicos de madeira ilegal somente no Maranhão, em parceria com a Polícia Rodoviária Federal (PRF) do Estado. A Secretaria observou que, entre os perfis que mais desmatam, estão pessoas jurídicas cuja atividade é a revenda de madeira beneficiada (madeireiras), como também do carvão vegetal e da lenha. Em geral, são recursos que abastecem demandas internas nacionais utilizadas na construção civil.

Polícia Rodoviária Federal apreende madeira ilegal, em operação realizada em 2021. (Divulgação)

A Sema ratifica que a derrubada ilegal é considerada crime e está sujeita a penalidades estabelecidas na Lei de Crimes Ambientais (n.º 9.605/1998), entre outras leis e regulamentações no âmbito do Maranhão, que podem ser diretamente aplicáveis. A instituição dispõe, ainda, de um canal de denúncias em Ouvidoria própria, ou por meio do sistema Sigep/Sema6.

Segundo números da Polícia Rodoviária Federal do Maranhão (PRF-MA), as apreensões de madeira ilegal, resultantes de ações de fiscalização, chegaram a 6.208 metros cúbicos, em 2021; 4.847 metros cúbicos, em 2022, e já configuram 3.204 metros cúbicos, apenas no primeiro semestre de 2023. Segundo o inspetor do Núcleo de Comunicação da PRF-MA, Adel Barbosa, a queda no quantitativo de apreensões pode ter relação com formas empregadas para burlar o sistema, ou mesmo o uso de rotas alternativas para desviar dos pontos de fiscalização.

As maiores apreensões no Maranhão ocorreram nas cidades de Imperatriz e Santa Inês, rotas conhecidas de escoamento da madeira, de dentro e de fora do Estado. De modo geral, a madeira ilegal proveniente da região amazônica vem, principalmente, do Pará (85%), pela rodovia, e aquela advinda de demais Estados (como Amazonas, Roraima e Amapá) chega de balsa na capital do Pará e em Santarém para, então, seguir pelas estradas.

Nessa direção, as unidades operacionais da PRF-MA em Imperatriz, Porto Franco e Açailândia cobrem parte da extensão da BR-010, a conhecida Belém-Brasília, que atravessa os Estados do Pará, Maranhão, Tocantins e Goiás. Já as unidades operacionais da PRF-MA em Santa Inês e em Nova Olinda representam, por exemplo, um campo de atenção à BR-316, uma rodovia federal que também sai de Belém, desta vez, a caminho do Nordeste brasileiro, chegando à cidade de Maceió, capital de Alagoas.

Por essas e outras rotas, a madeira ilegal chega em pontos clandestinos onde são cortadas em formato de viga, vigote, sarrafo e ripa. Assim, seguem para o Nordeste, Sudeste e Sul brasileiros. Entre as espécies de maior destaque nas apreensões, estão: maçaranduba, jatobá, cumaru e tatajuba, destinadas ao setor de construção, em sua maioria. O jatobá, por exemplo, é uma das espécies ameaçadas de extinção e segue na categoria vulnerável, segundo classificação do Serviço Florestal Brasileiro7.

Reserva Biológica do Gurupi, no Maranhão. (Divulgação/Goeldi)

No momento da apreensão da madeira ilegal pela PRF, o caminhoneiro que realiza o transporte assina o Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO) se colocando à disposição do Juizado Especial Criminal, quando chamado. A partir disso, os órgãos ambientais, como a Sema ou o Ibama, são comunicados oficialmente com todas as informações da respectiva apreensão. São essas mesmas organizações que ficam responsáveis pela retirada das respectivas cargas e por dar seguimento aos procedimentos legais cabíveis. Na “ponta final”, estão o Ministério Público e o Poder Judiciário Especial Criminal no papel de convocação e julgamento dos responsáveis, em até dois anos, quando esse tipo de crime prescreve.

Presente violento: a luta dos Guardiões da Floresta

Em meio à exploração ilegal de madeira, povos indígenas se veem em um lugar de vulnerabilidades, é o que diz outra liderança indígena da região de Arame, um dos municípios que fazem parte da TI Arariboia, no Maranhão. Segundo a liderança, as invasões, por motivo de exploração de madeira, já ocorrem desde, pelo menos, o ano de 1984, e nunca pararam. Afirma ainda que cerca de metade do território apresenta alguma ação madeireira e que há grande preocupação do avanço de atividades relacionadas ao arrendamento de terras para pastoreio bovino.

Além da preocupação com atividades que agravem a situação do desmatamento, os chamados Guardiões da Floresta, grupo de indígenas que fiscaliza e monitora o território, preocupa-se ainda com os povos isolados, que vivem da caça, da pesca e da coleta, por exemplo. Esse monitoramento é resultado de um trabalho voluntário coletivo, não remunerado e também perigoso. A exposição, considerada necessária para a sobrevivência da cultura indígena, foco da luta, segundo a liderança da região de Arame, leva a encontros violentos e até a assassinatos de nomes importantes para a história e para a cultura desses povos.

Guardiões da Floresta realizam monitoramento da floresta, na Amazônia maranhense. (Edivan Guajajara)

[…] A gente faz esse trabalho de fiscalização e monitoramento do nosso território e a gente atrapalha a atividade desses madeireiros, que ficam roubando as nossas madeiras do nosso território. […] A gente não tem paz nas nossas aldeias. Isso é minha revolta, minha indignação, sou liderança, faço parte da comunidade. Fica difícil a gente viver num país democrático e que não tem esse olhar amplo pro nosso povo indígena. Então, a gente fica à mercê dos invasores”, reflete a liderança.

Como tentativa de interromper as ações de invasores, as lideranças também comunicam à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), mas afirmam que os pedidos demoram a ser atendidos ou verificados.

Segundo o relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de 2022, com dados de 20218, foi registrado aumento de invasões em Terras Indígenas, intensificando os variados tipos de violências, tendo como resultado violações de direitos e da cultura desses povos. Pelo sexto ano consecutivo, o aumento está em três principais frentes de violações: (1) invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e (3) danos ao patrimônio. O Cimi registrou que essas ocorrências representam o triplo de 2018, considerando 226 TIs, em 22 Estados brasileiros.

Gilderlan Rodrigues, coordenador do Cimi, afirma que a missão é grandiosa. “O desafio é fazer as instituições responsáveis pela proteção dos territórios, pela vida dos povos, funcionarem, estarem fortalecidas para poderem cumprir com o seu papel. A morosidade também é outro desafio. É complicado”.

Nesse contexto, o que fica é a luta dos Guardiões da Floresta e lideranças indígenas na busca contínua por reconhecimento de seus espaços territoriais, de luta, de resistência e de existência. Segundo as lideranças consultadas e não identificadas, resistir é trabalhar diariamente na articulação territorial pela vida de milhares de famílias, seus respectivos saberes e cultura, como na TI Arariboia, no Maranhão. Ela representa aqui algumas das experiências de violências e de resistências, dentre as 330 Terras Indígenas identificadas somente no bioma Amazônia, no País9.

(*) Esta reportagem foi produzida com o apoio da Earth Journalism Network

(**) Camila Simões é jornalista (SRTE n.º2867 – PA), com mestrado e doutorado em Comunicação, Cultura e Amazônia, pela Universidade Federal do Pará (PPGCOM da UFPA). Escreve sobre (in)justiça climática e educação midiática.

(***) Maria Regina Telles é jornalista (DRT n.º762 – MA), pós-graduada em Gestão de Comunicação e Marketing (Ceuma) e pós-graduanda em Comunicação Organizacional, Marketing e Mídias Digitais (Fundelta). Atua, desde 2009, em assessoria de comunicação voltada à sustentabilidade ambiental e social. É produtora e repórter na Rádio Assembleia (MA).

(****) Monalisa Coelho é jornalista, pela Universidade Federal do Maranhão, e pós-graduada em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global (PUC-RS). Atuou com comunidades tradicionais e povos indígenas no Governo do Maranhão (2019-2021).