Após ocupar Brasília, povos indígenas preparam uma nova ofensiva contra ‘Marco Temporal’

A agenda de lutas dos povos indígenas incluiu um grande acampamento em Brasília contra a tese defendida pela bancada ruralista (Carolina Cruz/Reprodução)

02 de maio de 2023

21:05

Mencius Melo – Da Agência Amazônia

MANAUS – Após uma semana de intensas manifestações em Brasília por ocasião do Acampamento Terra Livre (ATL) 2023, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) anunciou, durante plenária, no encerramento do evento, uma nova ofensiva contra o ‘Marco Temporal’, previsto para entrar em pauta na agenda de julgamentos do Supremo Tribunal Federal (STF) no dia 7 de junho. A Apib voltará à capital federal de 5 a 9 de junho. A mobilização é mais um recado de que os povos originários não irão arredar um centímetro das ações programadas para 2023.

De acordo com o coordenador-executivo da Apib, Kleber Karipuna, o movimento é um desdobramento e uma continuidade da 19ª edição do Acampamento Terra Livre. “Em pouco mais de um mês, estaremos juntos, novamente, aqui na capital federal para fazermos mais um acampamento de luta e resistência contra essa tese que está tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF) e é uma verdadeira afronta aos direitos territoriais dos povos indígenas”, criticou a liderança.

A advogada indígena Inory Kanamary, da OAB-AM, é contra a tese do ‘Marco Temporal’ (Reprodução/Arquivo Pessoal)

A advogada e presidente da Comissão de Amparo e Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-AM), Inory Kanamary, originária do povo Kanamary do Vale do Javari, também criticou a tese do “Marco Temporal”. “Estávamos aqui antes da chegada dos portugueses e ainda assim seguimos sendo invisibilizados. Defender que nós, povos indígenas, só teríamos direito à demarcação das terras se estivéssemos em sua posse a partir do dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, é uma clara tentativa de negar nossa existência e, por conseguinte, nosso direito“, disparou.

Homens brancos

Para a advogada, é um incômodo ter que recorrer ao STF para assegurar o que, sequer, deveria estar em discussão. “Querer provar nossa existência a partir de 1988 e ainda nos submeter ao julgamento de homens brancos que, sequer, pisaram em uma aldeia ou em um território indígena, é mais um duro golpe em nossa história”, lamentou Inory. “Do STF, somente a ministra Rosa Weber se prontificou a ir a uma aldeia. Acredito que por ser mulher, Rosa teve e tem mais sensibilidade para compreender nossa luta”, avaliou.

Caso a tese que limita as demarcações de terras indígenas a partir da data de 1988, para os dias atuais, vença, Inory Kanamary analisa que é um golpe de morte na vida e no direito dos povos indígenas no Brasil. “O julgamento a favor do Marco Temporal é negar nosso direito de, pelo menos, continuarmos existindo. É nos violar de todos os direitos inerentes a nossa dignidade enquanto pessoa. Sem território não há vida, sem vida não há direitos”, pontuou.

A Apib mantem a agenda de lutas para o mês de junho e promete ocupar Brasília em mais uma grande mobilização (Reprodução/Apib)

Estupro jurídico

Para o sociólogo Luiz Antônio, a tese do “Marco Temporal” é um estupro jurídico. “Estão violando a Constituição de 1988. Contido nela, está o ‘Artigo 231’ que diz, textualmente, que é assegurado aos povos indígenas a cultura, a língua, as tradições e o território, cabendo à União a proteção desses direitos e o demarcar dos territórios. E a Constituição Federal (CF) não fala que esse direito tem data. Já o ‘Marco Temporal’ vem e sugere que o direito estaria consagrado a partir de 1988, como se os indígenas tivessem surgidos naquela data. O que é um completo absurdo”, acusou.

Luiz Antônio aponta ainda a contradição maior da tese defendida pela bancada ruralista no Congresso Nacional. “A Constituição garante o princípio da propriedade privada e os formuladores da tese do ‘Marco Temporal’ estabelecem uma linha de tempo que exige que a propriedade privada anterior a 1988 seja respeitada, ora: se você respeita a propriedade privada anterior a 1988, por que que você coloca em cheque um direito também assegurado antes de 1988?”, questionou.

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