Associação diz que pergunta de sertanejo sobre genitália sexualiza mulher trans

À esquerda, o cantor Bruno, da dupla com Marrone; à direita, a repórter Lisa Gomes (Reprodução/Redes Sociais)

16 de maio de 2023

23:05

Adrisa De Góes – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – Após a repercussão do episódio em que o sertanejo Bruno, da dupla com Marrone, pergunta à repórter da Rede TV! Lisa Gomes, que é uma mulher trans, sobre as partes íntimas dela, a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas (Assotram) comentou o caso de transfobia, nesta terça-feira, 16.

À REVISTA CENARIUM, a presidenta da organização, Joyce Gomes, afirmou que as normativas voltadas à população LGBTQIAP+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais/Transgêneros/Travestis, Queer, Intersexual, Assexual, Pansexual), na maioria das vezes, não são tratadas com seriedade. Para ela, esse é um dos motivos de pessoas se sentirem livres para tecer comentários considerados LGBTfóbicos.

A presidenta da Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Amazonas, Joyce Gomes (Reprodução/Redes Sociais)

“Quando a gente trabalha essa questão das normativas para a população LGBT, a gente se depara com normativas ainda muito fragilizadas. A gente ainda não tem legislação específica. As pessoas ainda sexualizam essa questão da transexualidade”, analisa a presidenta.

Para Joyce, o questionamento feito à repórter, na última sexta-feira, 12, durante um evento no Villa Country, em São Paulo, é constrangedor e vexatório, principalmente, por ter acontecido em frente a outras pessoas. “Eu vejo como uma importunação sexual. O que tem a ver, o que eu tenho, ou não, nas minhas pernas? Como se isso fosse atingir o outro. É algo muito particular”, complementa.

Assista o momento da pergunta:

Legislação

O Supremo Tribunal Federal (STF) criminalizou a homofobia e a transfobia, no mesmo enquadramento da Lei de Racismo (7.716/89). A partir de então, condutas que “envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero” são consideradas crime, com pena de um a três anos de prisão e multa. Quando o ato tem divulgação ampla, a penalidade pode subir para até cinco anos.

Trecho da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, aprovada em 2019 pelo STF (Reprodução/STF)

Sobre o caso em tela, o advogado Luiz Gustavo Negro Vaz Junior explica que, dada a abordagem, pode ser considerado transfobia, pois a situação se relaciona, diretamente, à identidade de gênero da pessoa ofendida, sendo uma forma de preconceito.

“Ele [Bruno] constrangeu a pessoa, direcionando à condição física dela, condição como mulher trans. Colocando o caso como no pior cenário, seria enquadrado como um caso de transfobia”, afirma o especialista, ressaltando que a aplicação da pena de racismo valerá até o Congresso Nacional aprovar uma lei sobre o tema.

Manifestantes em protesto a favor da visibilidade transexual, na Avenida Paulista, região central de São Paulo, em 2018 (Cris Faga/NurPhoto via Getty Images)

Danos psicológicos

A psicanalista Samiza Soares lembra que a transição de gênero não é um processo fácil e, muitas vezes, pode ser acompanhada por diversas dificuldades, incluindo preconceito e discriminação. Ela ressalta que o ocorrido com a repórter Lisa Gomes pode trazer, à tona, traumas e sentimentos de exclusão e discriminação.

“Quando uma pessoa trans passa por uma situação como essa, em que é questionada sobre sua identidade de gênero, de forma agressiva ou discriminatória, pode sentir-se desvalorizada e desrespeitada. Além disso, a situação ocorreu durante um momento de trabalho da repórter, o que pode gerar ainda mais pressão e estresse emocional”, argumenta a especialista.

Pedido de desculpas

Após a repercussão negativa, o cantor Bruno usou as redes sociais para pedir desculpas à repórter Lisa Gomes, na noite de segunda-feira, 15. Por meio de um vídeo, no Instagram, o sertanejo disse que teve uma atitude “inconsequente” e “infantil”.

“Eu estou aqui para pedir desculpas para Lisa Gomes, pelo que eu perguntei a ela. Fui totalmente infantil, fui totalmente inconsequente. Eu quero pedir desculpas, eu acho que não tem como voltar no tempo, e pedir perdão para ela. Perdão, Lisa Gomes”, disse.

Processo doloroso

Na sequência, a repórter também usou o Instagram, na noite de segunda, para comentar a situação. Em um vídeo de pouco mais de cinco minutos, ela relata o que sentiu durante e após o episódio, e afirma que teve gatilhos ativados com a atitude.

“[A situação] me trouxe, novamente, a um lugar que eu não gostaria de estar, que é aquele lugar onde a gente passa quando está no processo de transição. É um processo muito doloroso, porque eu nunca soube lidar muito bem com essa questão da aceitação do corpo. Eu me senti invadida, senti a minha intimidade exposta de uma forma que eu não gostaria que fosse”, conta a repórter.

Em conversa com o colunista do UOL Lucas Pasin, nessa segunda, Lisa revelou que vai levar o caso à Justiça e já reuniu com seus advogados para discutir o assunto. “A comunidade precisa dessa resposta para mostrar que a gente não pode baixar a cabeça, ficar com medo de não meter um processo e correr atrás dos nossos direitos”, disparou.

Situação atemporal

Se episódios de transfobia, em frente às câmeras, ainda acontecem de forma livre, atualmente, na década de 80, eram ainda mais normalizados. Um exemplo disso é o que aconteceu nos programas dos apresentadores Silvio Santos e Fausto Silva, o Faustão, durante participação da atriz brasileira Roberta Close, uma das transexuais mais conhecidas do Brasil.

Assista:

Trechos da participação de Roberta Close nos programas Silvio Santos e Faustão, na década de 80 (Reprodução/Internet)

Em ambos os programas, que eram transmitidos em canais de televisão abertos para todo o Brasil, a artista foi constrangida com uma série de perguntas referentes à sexualidade e partes íntimas, além de ter a transexualidade condicionada a problemas mentais.

Alguns dos questionamentos foram: “Roberta, você é mulher ou homem?”; “Roberta, meu filho, você gostaria de fazer uma operação para virar, realmente, mulher?”; “Muitas pessoas, que têm um problema como o seu, gostariam de saber se essa operação resolve todos os problemas. Não só os problemas psíquicos, como os problemas físicos também”.