Autocensura

24 de agosto de 2023

20:08

Em julgamento ocorrido na quinta-feira, 10 de agosto, anterior ao Dia do Advogado, o Supremo Tribunal Federal (STF) admitiu a possibilidade de veículos de comunicação serem responsabilizados civilmente por injúria, calúnia ou difamação proferidas por entrevistado, isto mesmo, pelas opiniões proferidas por entrevistado, sem qualquer vínculo direto com a rede, jornal ou programa de entrevistas.

Até o momento não se delineou em que situações e tampouco de que maneira esta responsabilização será aferida, há três possibilidades divergentes na Corte, a primeira delas encabeçada pelo ministro Alexandre de Moraes na tese “Liberdade com responsabilidade”, segundo a qual há possibilidade de responsabilização pela publicação de informações “comprovadamente injuriosas”, a segunda, protagonizada pelo ministro Edson Fachin, entende como devida a responsabilização do veículo de comunicação quando se reproduz unilateralmente acusação contra ex-dissidente político, “imputando-lhe crime praticado durante regime de exceção” e, por fim, a tese do ministro Luís Roberto Barroso para quem só é possível responsabilizar jornais por declarações de terceiros quando, à época da publicação, havia indícios concretos de falsidade da afirmação e o veículo inobserva o “dever de cuidado” na verificação dos fatos ao divulgar informações com indícios de falsidade.

Ministro Marco Aurélio, então relator do caso, deixou seu voto, antes da aposentadoria, de acordo com o mesmo, empresas jornalísticas não podem responder civilmente por declarações de entrevistados, desde que o jornal não emita opinião sobre o assunto, podendo somente ser responsabilizados quando cometerem desvios, o que não ocorre quando jornais se limitam a apenas divulgar uma entrevista.

Pela validade do argumento, cumpre destaque de seu entendimento “a intervenção do Judiciário dá-se voltada ao controle do abuso. (…). Entender pela responsabilização, ao que se soma à circunstância de tratar-se de julgamento sob a sistemática da repercussão geral, sugere o agasalho de censura prévia a veículos de comunicação”.

A este entendimento, adere ao articulista, afinal, independente da tese a ser fixada por nossa Corte Superior, pensar que veículos de comunicação podem ser levados a fazer uma autocensura, um controle prévio das respostas do entrevistado, a fim de minimizar ou evitar a potencial responsabilização civil por informações e opiniões de terceiros, o que, convenhamos, é um clássico modelo de controle de informação ao tolir a livre manifestação de ideias.

Muito embora existam veículos de comunicação questionáveis em seus métodos e programas, estes certamente não respondem pela ampla maioria que presta o relavante serviço de estimular a diferente apresentação de ideias, o debate, a forma mais pura de democracia, que é o confronto de pensamentos distintos, concorde-se ou não com eles.

Ademais, que a possibilidade concreta de se promover esta verificação prévia, salvo nos meios de comunicação impressos, tais como jornais e revistas, é praticamente impossível controlar ou orientar aquilo que um entrevistado poderá dizer, basta ter como exemplo os debates políticos em épocas de eleição. As pautas são concordadas previamente entre os partidos, candidatos são orientados por suas respectivas equipes de comunicação e, no calor do debate, aqui e ali, são apresentadas questões e opiniões que não foram previamente repassadas. Do mesmo modo, um entrevistado pode previamente dizer tudo o que o “censor” quer ouvir e, ao entrar no ar, mudar totalmente sua opinião.

É preciso, igualmente, que se entenda que se a liberdade de expressão significa alguma coisa é justamente a possibilidade de que se possa dizer aquilo que, muitas vezes, a audiência (ou parte dela) não quer ouvir, é proteger o discurso dissidente, é dar vez à voz do inimigo, permitir aquilo que o pensamento prevalente considera ofensivo, vil, odioso, em especial, se proferido por pessoas que podem ser consideradas desprezíveis. Se a liberdade de expressão protege isto, protegerá também todo o resto.

Diga-se, novamente, respeitar a liberdade de expressão alheia significa permitir que o outro fale, mesmo que suas ideias sejam totalmente abomináveis. Isto não significa, em absoluto, que precisemos concordar com elas, pelo contrário, há o dever e o direito de usar nossa liberdade de expressão para contrapor, no debate público, as ideias que julgamos infames, e este é também o papel da imprensa.

Imagine-se um mundo com a tese fixada pelo Supremo, questões outras e relevantes surgem de imediato como: quem irá decidir o que é certo para ser veiculado nas mídias? Quem terá autoridade para definir quais são as informações que eximem as empresas e programas jornalísticos de responsabilidade? Quem é confiável o suficiente para ter esta autoridade nas mãos? E o que dizer de informações e entrevistas veiculados, exclusivamente, em plataformas virtuais?

Não é um assunto simples, como não é simples viver em Democracia e em Liberdade. É evidente que, por vezes, ocorrerão situações excepcionais, discursos e ideias ofensivas que provocarão desconforto e indignação, contudo, este é o preço a se pagar para manter a liberdade de todos, incluída a imprensa em seu papel de estimular o debate e fiscalizar, evitando-se a tirania.

Se concedermos este poder ao Estado para ainda que indiretamente promover uma autocensura nos órgãos e veículos de informação, limitando o que pode ou não ser dito, jamais saberemos onde isto pode eventualmente parar, correndo o risco de nós mesmos, amanhã, nos tornarmos vítimas de investidas autoritárias.

Anderson F. Fonseca é advogado e especialista em Comércio Exterior e ZFM; professor de Direito Constitucional e possui o Instagram @anderson.f.fonseca.
Editado por Pricila de Assis
Revisado por Adriana Gonzaga