Desaparecimentos de Bruno Pereira e Dom Phillips intimidam jornalismo e ativismo na Amazônia, afirma UFPR
13 de junho de 2022
22:06
Ívina Garcia – Da Revista Cenarium
MANAUS – O desaparecimento do jornalista e indigenista Bruno Pereira e Dom Phillips acende alerta de omissão do governo federal na Amazônia e escancara ataques à liberdade de imprensa. Em nota técnica, o Núcleo de Estudos em Sistemas de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (NESIDH/UFPR) aponta demora no início das buscas e revela indícios de que o sumiço se trata de um desaparecimento forçado.
O desaparecimento forçado trata-se da privação de liberdade de uma ou mais pessoas, realizada por agentes autorizados ou não, pelo Estado, que ao invés de ajudar nas buscas, acaba dificultando e privando o acesso a informações sobre o paradeiro dessas pessoas.
No caso do indigenista e do jornalista, que estavam realizando expedição que duraria 15 minutos de um trecho a outro, a violação dos direitos se iniciou a partir do momento em que as buscas não foram executadas de forma eficiente desde o primeiro dia, de acordo com o relatório.
“Os elementos que consubstanciam o desaparecimento forçado se encontram, todos, no presente caso. A privação de liberdade é clara, […] assim como não há quaisquer notícias que possam dar informações acerca da detenção, destino ou paradeiro de ambos durante este período”, explica o documento.
Ataques e perseguições
O Núcleo aponta, ainda, a problemática vivida por ativistas e jornalistas, alvos de perseguições e tentativas de censura desde que Bolsonaro assumiu o cargo de presidente da República. De acordo com um relatório da Associação brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), houve crescimento de 22% no número de atentados, agressões, ameaças e intimidações, em 2021, dentre eles, 46 vieram diretamente do presidente, sendo ele o principal autor das ocorrências.
Quanto ao caso de Bruno e Dom, Bolsonaro levou dois dias para se pronunciar sobre os desaparecidos, e quando o fez, chamou de “aventura” e estigmatizou a região como sendo um local “selvagem”, se referindo aos indígenas de recém-contato que vivem no local. No entanto, a dupla teve apoio de indígenas durante o trajeto. Estes, sendo as principais testemunhas e interessados na localização dos ativistas.
Até o momento, as informações indicam que o desaparecimento tem envolvimento de ribeirinhos, tendo um deles sido preso no último dia 9, identificado como Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, entretanto, houve uma ‘demora injustificada’ para o começo das buscas por parte do governo, e as falas de Bolsonaro demonstraram, de acordo com o estudo, uma recusa em reconhecer a privação de liberdade das vítimas, sem realizar esforços para descobrir o destino ou paradeiro deles.
“Uma equipe de 13 vigilantes indígenas que circulavam com o jornalista e o indigenista pela região do Vale do Javari, em Atalaia do Norte, no Estado do Amazonas, na fronteira com o Peru, afirma que eles foram vítimas de uma emboscada. Este mesmo grupo tem, incessantemente, realizado buscas, sem sucesso em encontrá-los”, diz trecho do documento onde indígenas afirmam ter avistado “grupo de ribeirinhos que se deslocavam em uma embarcação cujo motor é reputado como incomum para navegar em cursos d’água mais estreitos, e demonstrou hostilidade ao realizar intimidações e evidenciar que portavam armas de fogo” dias antes do sumiço dos ativistas.
Histórico de impunidade
O texto lembra que o Brasil possui histórico de impunidade de indivíduos que cometem crimes contra ativistas e pessoas que defendem minorias. Existem, atualmente, inúmeros casos como esse, que por omissão do Estado acabam arquivados ou acabam sendo arrastados até o crime prescrever.
“O temor causado por essas situações reduz, diretamente, as chances de que outros defensores exerçam seu direito de defender os direitos humanos . Especialmente, porque os agressores buscam produzir um efeito ‘exemplar’, isto é, visam reduzir as denúncias de violação e provocar o afastamento de defensores de determinadas áreas”, pontua.
A invasão do Vale do Javari já é relatada em documentos que datam desde antes de 2017, mas que se agravaram durante a pandemia, com a invasão de missionários religiosos dentro da terra indígena onde os índios isolados vivem, além da atuação de garimpeiros fora e dentro da TI, tendo contato direto com indígenas de etnias e línguas ainda desconhecidas.
“A comunidade São Rafael, onde Bruno teve a última reunião antes de sumir, é conhecida por sofrer influência financeira de traficantes de drogas, garimpeiros e demais exploradores que invadem o território preservado”, diz trecho da petição inicial da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709, estudo conjunto da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Instituto Socioambiental.
O estudo, além de tratar da transmissibilidade da Covid-19, em Terra Yanomami, também relatou o assassinato de, ao menos, 20 indígenas de uma aldeia isolada do Vale do Javari por garimpeiros ilegais do município de São Paulo de Olivença e outro assassinato de indígenas da comunidade isolada dos Warikama Djapar.
Para o núcleo, está clara a ausência do Estado no que diz respeito ao controle das fronteiras localizadas entre pontos-chave do narcotráfico. “O Vale do Javari é uma região localizada na fronteira com o Peru e a Colômbia, com acesso restrito por vias fluviais e aéreas, a região, de 85 mil km², abriga 6.300 indígenas de 26 grupos diferentes, 19 deles isolados, considerada a maior concentração do mundo”, relata.
O ex-coordenador regional da Funai, Bruno Pereira, possuía autorização para a entrada na terra indígena, expirada em 31 de maio. Segundo a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Bruno saiu da TI no dia 30 de maio e se encontrou com Dom no dia 31, fora dos domínios dos indígenas isolados, para acompanhar a entrevista com uma equipe de vigilância indígena, próximo ao Lago do Jaburu.
“Bruno Pereira, assim como o jornalista Dom Phillips, se enquadram em profissões que demandam especial proteção estatal, tendo em vista os riscos envolvidos”, pontua o documento.
O desaparecimento forçado de Bruno e Dom, como pontua o arquivo, é considerado uma violação múltipla e contínua de Direitos Humanos, isso porque “uma vez que se trata de uma pluralidade de atos que, unidos por uma única finalidade, perduram de forma continuada ou permanente, enquanto o paradeiro da vítima ou seus restos mortais não forem conhecidos, ou ainda quando a identidade do indivíduo não tenha sido determinada precisamente”, escreve.
“O desprezo de Bolsonaro não se limita apenas às suas falas. Diante do desprezo que tem pelas populações indígenas, se omite em tomar medidas efetivas para impedir o massacre que ocorre com a população indígena, com famílias mortas, jovens indígenas estupradas até desfigurar seus corpos ou até a morte por homens que praticam, ilegalmente, garimpo e invadem e contaminam suas terras, com um aval silente de um governo que pensa que minorias devem se curvar ou desaparecer”, finaliza o texto.