‘Desinformação que Mata’: Fim da pandemia, não da responsabilidade

Paciente com Covid-19 em tratamento em hospital de Manaus (Reprodução/Raphael Alves)

28 de maio de 2023

10:05

Paula Litaiff – Da Agência Amazônia

MANAUS (AM) – No mês em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou em Genebra, na Suíça, o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII) referente à Covid-19, em 5 de maio, vêm à tona dados que apontam a responsabilidade por desinformações que nortearam gestores sobre a administração da pandemia na segunda onda do novo coronavírus, que ocorreu entre 1º de novembro de 2020 e 30 de junho de 2021, período em que o vírus mais matou na Amazônia e no Brasil.

O artigo intitulado “Desinformação causou aumento da mobilidade urbana e fim do confinamento social antes da segunda onda da Covid-19 na Amazônia”, coordenado pelo biólogo Lucas Ferrante, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), junto a mais sete pesquisadores de cinco instituições do Brasil, publicado na revista científica Journal of Racial and Ethnic Health Disparities, apontou que informações divulgadas, antes da segunda onda do novo coronavírus, no Objetivos de Desenvolvimento Sustentável Atlas Amazonas (ODS Atlas Amazonas), coordenado pelo pesquisador da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) Henrique Pereira, agrônomo e mestre em Ecologia, geraram um nível de desinformação letal. O ODS Atlas Amazonas defendeu que o vírus sofreria uma remissão “por conta própria”, dentro de um estudo denominado de “modelo logístico”.

Paciente com Covid-19 em tratamento em hospital de Manaus (Reprodução/Raphael Alves)

No resumo do artigo, os cientistas apontam: “Projeções tendenciosas sobre a Covid-19 no Brasil forneceram uma desculpa atraente para indivíduos e tomadores de decisão justificarem escolhas ruins durante uma fase crítica da pandemia. Os resultados errôneos, provavelmente, contribuíram para a retomada prematura das aulas presenciais e a flexibilização das restrições ao contato social, favorecendo o ressurgimento da Covid-19. Em Manaus, a maior cidade da região amazônica, a pandemia de Covid-19 não terminou em 2020 por conta própria, mas se recuperou em uma desastrosa segunda onda da doença”.

Ao contrário do que informou o ODS Atlas Amazonas, no segundo semestre de 2020, Manaus (AM) vivenciou uma segunda onda da Covid-19 cuja alta transmissão comunitária propiciou o surgimento da variante P.1, conhecida como gama. A variante matava em ciclos de até 14 dias e chegou a todo o País, superlotando hospitais e colapsando o sistema de saúde.

Covas coletivas abertas em cemitério de Manaus, durante pandemia da Covid-19 (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A segunda onda da pandemia foi responsável por um novo colapso do sistema de saúde e funerário em Manaus, que foi a primeira cidade do mundo a ter todas as Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) ocupadas e já havia sido a primeira a enterrar seus mortos em valas comuns, de acordo com dados publicados na revista científica Preventive Medicine Reports.

Em Manaus (AM), o saldo de mortes foi de 4.430 mortes, entre 1º de janeiro e 2 de março de 2021, 1.050 a mais do que no primeiro ápice da pandemia em 2020, no mesmo período, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS/AM). 

No final do ciclo da segunda onda de Covid-19 no Amazonas, junho de 2021, o Estado registrava 13.249 mortes. Dessas, 9.121 ocorreram em Manaus e 4.125 nos outros 61 municípios. No dia 25 de junho daquele ano, pela primeira vez em sete meses do segundo ápice, o Estado amazonense não registrava óbitos por Covid-19.

Durante o ápice da pandemia no Amazonas, em abril, a Secretaria de Saúde precisou trabalhar com recursos próprios para aumentar a capacidade de atendimento (Reprodução/Secom)

Desinformação letal

O estudo publicado no Journal of Racial and Ethnic Health Disparities (https://doi.org/10.1007/s40615-023-01607-4), em 24 de abril deste ano, mostrou que, diferentemente do que defendeu o ODS Atlas Amazonas, de que Manaus estava entrando na última fase da pandemia no início de junho de 2020, as evidências numéricas não apontavam para o fim da pandemia, além das projeções publicadas serem tendenciosas, sem análises adequadas e sem base científica sólida.

Os dados epidemiológicos da época sugeriam que nenhum país europeu havia visto taxas de infecção altas o suficiente para evitar uma segunda onda de transmissão se os controles comportamentais ou as precauções fossem relaxados sem a implementação de medidas compensatórias”, diz o artigo científico coordenado por Lucas Ferrante.

Boletim 10: Vol 2 Especial n.º 10, maio de 2020 – ISSN: 2675-0384 (Reprodução)

A pesquisa rechaçou ainda a informação que o grupo de Henrique Pereira defendeu de que as reduções de casos graves (hospitalizações) e mortes (letalidade) deveriam ser atribuídas a “complexos mecanismos coevolutivos da relação hospedeiro-patógeno”.

Um processo coevolutivo envolvendo a espécie humana pressuporia a ocorrência de um processo de seleção natural na espécie humana, o que só seria plausível em uma escala temporal de muitas décadas e, portanto, irrealista, no caso do novo coronavírus SARS-CoV-2”, concluiu o pesquisador e doutor Lucas Ferrante.

Participaram do estudo com Ferrante os pesquisadores Dr. Alexandre Celestino Leite Almeida (Universidade Federal de São João del-Rei – UFSJ), Dr. Jeremias Leão (Universidade Federal do Amazonas – Ufam), Dr. Wilhelm Alexander Cardoso Steinmetz (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG), Dra. Ruth Camargo Vassão (Instituto Butantan de São Paulo), Dr. Rodrigo Machado Vilani (Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), Dr. Unaí Tupinambás (Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG) e Dr. Philip Martin Fearnside (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – Inpa).

ODS Atlas Amazonas

O grupo de Henrique Pereira que coordenava o ODS Atlas Amazonas, em junho de 2020, contava com o apoio dos pesquisadores Danilo Egle Santos Barbosa (Universidade Federal do Amazonas – Ufam), Suzy Cristina Pedroza (Universidade Federal do Amazonas – Ufam), Bruno Lorenzi (Universidade Federal do Amazonas – Ufam) e da enfermeira especialista em saúde coletiva Francynara Dias Lorenzi.

O grupo liderado pelo pesquisador Lucas Ferrante, que previu a segunda onda da Covid-19, publicou artigo científico que responsabiliza o grupo coordenado pelo pesquisador Henrique Pereira de publicar desinformação que contribuiu para mortes no Amazonas, em 2021. Nas figuras A e B, estudo sobre Manaus aponta a curva violeta, que indica as mortes projetadas, e a curva preta, as mortes observadas (Journal of Racial and Ethnic Health Disparities)

REVISTA CENARIUM buscou ouvir os cinco pesquisadores que assinaram os boletins do ODS Atlas Amazonas das datas 10 de maio e 11 de junho de 2020, contestados no artigo “Desinformação causou aumento da mobilidade urbana e fim do confinamento social antes da segunda onda da Covid-19 na Amazônia”, publicado na revista científica Journal of Racial and Ethnic Health Disparities.

Procurado pela reportagem, que questionou se ele gostaria de se pronunciar sobre o artigo, o pesquisador Danilo Egle informou que também coordenou o projeto e que consultaria os demais pesquisadores. “Nossa posição é a seguinte: o nosso projeto, oficialmente, não tem nada a declarar sobre o estudo apresentado”, afirmou, em resposta à CENARIUM. Danilo consta nos boletins do ODS Atlas Amazonas como coordenador técnico da pesquisa.

A reportagem também contactou Henrique Pereira, que consta nos boletins do ODS Atlas Amazonas como coordenador-geral da pesquisa. Ele informou também não ter nada a declarar.  

Na figura A, o estudo sobre a Covid-19, do grupo de Henrique Pereira sobre Boa Vista (RR), Macapá (AP), Rio Branco (AC) e Porto Velho (RO), em 2021, é colocado em xeque por Lucas Ferrante, na abordagem sobre a tendência “cinza” que, segundo Ferrante, induz o leitor a pensar que as curvas de aumento da Covid-19 antes da segunda onda atingiriam a redução automaticamente. Na figura B, o grupo de Lucas Ferrante confronta a equipe de Henrique Pereira na tese de afirmar que o número de mortes diárias estava diminuindo nas cidades de Belém (PA) e Manaus (AM). Para eles, o eixo y tem uma escala logarítmica. Uma diminuição na inclinação da curva de mortalidade não significaria, necessariamente, que o número de mortes diárias está diminuindo (Journal of Racial and Ethnic Health Disparities)

Sobre a publicação científica

Journal of Racial and Ethnic Health Disparities é uma publicação científica internacional, com artigos e pesquisas publicados em inglês. A publicação informa em seus objetivos e escopo que “relata o progresso acadêmico do trabalho para entender, abordar e, finalmente, eliminar as disparidades de saúde com base na raça e etnia”. Informa ainda que “esforços para explorar as causas subjacentes das disparidades de saúde e descrever as intervenções que têm sido empreendidas para abordar as disparidades raciais e étnicas de saúde são apresentados”. Ainda segundo informações da publicação, “como o Journal of Racial and Ethnic Health Disparities” recebe um grande número de submissões, cerca de 30% das submissões para a revista são enviadas para revisão completa por pares. A publicação conta com um conselho editorial composto por diversos pesquisadores dos Estados Unidos.

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O assunto foi tema de capa e especial jornalístico da nova edição da REVISTA CENARIUM do mês de maio de 2023. Acesse aqui para ler o conteúdo completo.

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