Destruição de símbolos: historiadores acreditam na ressignificação de monumentos escravistas

Incêndio atingiu a estátua de Borba Gato, na zona sul de São Paulo, em 24 de julho de 2021 (Gabriel Schlickmann/Ishoot/Estadão)

02 de janeiro de 2023

14:01

Ívina Garcia – Da Agência Amazônia

MANAUS – “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie. E, assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.” (Walter Benjamin, 1940).

A citação de Walter Benjamin, parafraseada pelo historiador e mestre em História Social Juarez Clementino da Silva Júnior, traz uma avaliação sobre monumentos históricos que carregam símbolos racistas, escravistas e de opressão espalhados por todo o mundo.

Iniciado em 2020, após George Floyd ter sido brutalmente assassinado por policiais brancos, a destruição e derrubada de imagens se espalhou ao redor do mundo, chegando ao Brasil, como um sinal de reestruturação história.

Monumentos a Edward Colston, um dos maiores comerciantes de escravos do século 17; Leopoldo II, o rei do século 19 cujo regime contribuiu para a morte de milhões de pessoas na África; a destruição do monumento a Borba Gato, em São Paulo; e a retirada da estátua de Catarina, Imperatriz da Rússia, na Ucrânia, são alguns dos símbolos atingidos pelo movimento.

Incêndio atingiu a estátua de Borba Gato, na zona Sul de São Paulo, na tarde de 24 de julho de 2021 (Gabriel Schlickmann/Ishoot/Estadão)

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A destruição das figuras não muda o que já foi feito no passado, mas conforme especialistas ouvidos pela AGÊNCIA AMAZÔNIA, a reforma histórica é necessária para que a história oficial seja reescrita pelo olhar de quem precisa ser representado.

Juarez Clementino entende que cada monumento é criado a partir de óticas e perspectivas distintas ligadas a contextos que não necessariamente se validam ou popularizam ao longo do tempo. Para ele, “um monumento do tipo homenagem pessoal só deve estar em público se ainda há espírito público que justifique a permanência”.

Mesmo que uma parcela da população pareça apática em relação à permanência ou não desses símbolos, o historiador pontua que existem grupos que se manifestam contrários e que eles, portanto, deveriam ser ouvidos.

Entendo que uma vez questionada e debatida publicamente a conveniência ou não de manter tais monumentos, deve o poder público tomar as medidas necessárias a partir não apenas da opinião pública, mas também de uma análise e julgamento técnico (o que inclui disposições legais)”, avalia.

Ingleses derrubaram a estátua do escravocrata Edward Colston e jogaram no rio (Reprodução/Twitter)

O Brasil completou 200 anos de independência em 2021, a conquista democrática é ainda mais jovem, com pouco mais de 30 anos desde a Constituição Brasileira de 1988, ambos sequer superam o período escravocrata no Brasil Colônia, que durou mais de 300 anos.

O reflexo disso está marcado nos monumentos e na cultura artística do País. Exploradores, comerciantes de escravos e a própria monarquia, responsável pela morte de inúmeros brasileiros e sul-americanos, têm espaço garantido nos museus de arte, em pinturas, esculturas, nomes de locais e praças.

Além de Borba Gato, o imperialista Duque de Caxias, responsável por assassinato de indígenas e negros; o traficante de escravos, Joaquim Pereira Marinho; os exploradores e bandeirantes, os Anhanguera; o escravista Fernão Dias, entre outros, ainda resistem em monumentos.

Monumento às Bandeiras pichado por manifestantes, em 2016 (Rovena Rosa/Agência Brasil)

Para a mestre e professora em História Kivia Mirrana Pereira, a dominação europeia na história é a principal responsável pela existência de tantos símbolos de opressores, lidos como heróis. “A nossa memória, especialmente a memória brasileira, é formada sobre esse processo de dominação, de colonização, e mesmo nesse processo de pós-independência, a gente ainda tem símbolos e uma história oficial muito cravada em reverenciar a Europa”, diz.

Se temos de um lado uma história muito cravada pela colonização, pela opressão, pelo domínio do corpo, pelo domínio da mentalidade, pelo domínio do trabalho, pelo domínio da cultura, nós temos do outro lado, um lado sempre retratado como vencedor“, pontua a especialista.

A nova leitura e o avanço da atualização da memória coletiva faz parte da construção de uma sociedade mais consciente, segundo a historiadora. Kívia afirma que é significativo questionar e dar outro lugar a essa narrativa.

Estátua de Sebastián de Belalcázar, conquistador espanhol do século 19, derrubada por indígenas em Cali, na Colômbia (AFP)

Isso precisa ser compreendido não como um processo de vandalismo, mas de mostrar para a sociedade que a história foi contada de forma errônea e equivocada, e questionando ela é possível criar uma história a partir da ressignificação, e isso não será feito de forma harmônica“, diz.

A historiadora defende, ainda, que não é necessária uma guerra contra os monumentos, mas que, garantidamente, o questionar gera conflito, principalmente quando se questiona uma história de colonização e opressão com mais de 500 anos.

É importante que façamos esse processo de reconstrução da memória nacional, colocando nosso povo brasileiro em evidência e não apenas personagens políticos que se aproveitaram desse processo de colonização para evidenciar um projeto civilizatório que trouxe enorme consequências para a civilização“, avalia a historiadora.