Dívida de concessionária deixa ribeirinhos sem água por uma semana em RO

O motivo é uma dívida da Companhia de Águas e Esgotos do Estado de Rondônia (Caerd) com a Energisa, que faz a distribuição de energia elétrica no Estado (Montagem: Thiago Alencar/Revista Cenarium)

01 de agosto de 2023

21:08

Iury Lima – Da Agência Amazônia

VILHENA (RO) – Não há como cozinhar, tomar banho, limpar a casa ousimplesmente, matar a sede. Uma realidade que vem sendo constantesofrida e negligenciada para parte dos quatro mil moradores do distrito de Calama, na região ribeirinha de Porto Velho, capital de Rondônia.

Mesmo com a abundância do Rio Madeira, a comunidade, que se trata do último povoado de Rondônia, na divisa com o Amazonas, seguindo o curso do afluente, não vê a água tratada cair pelas torneiras desde a última quinta-feira, 27. O motivo é uma dívida da Companhia de Águas e Esgotos do Estado de Rondônia (Caerd) com a Energisa, que faz a distribuição de energia elétrica no Estado. A comunidade fica a 150 quilômetros de Porto Velho, com acesso apenas de barco. 

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Moradora de Calama, na região de Porto Velho, reclama da falta de água encanada na comunidade (Reprodução/Arquivos de Calama)
Condições desumanas

A AGÊNCIA AMAZÔNIA apurou que uma mãe comprou refrigerante e bolachas para que o filho pudesse almoçar antes de ir para a escola, nesta semana. “Tô com um monte de litro seco aqui (…) já andei em todo canto procurando um pouco d’água para encher um litro e colocar na minha geladeira, mas eu não consegui”, diz uma outra moradora em um áudio a que a reportagem teve acesso.

De acordo com a população, a Energisa cortou o fornecimento elétrico que alimentava uma das bombas de distribuição hídrica para o distrito e, até esta terça-feira, 1° de agosto, nem as autoridades, nem os órgãos competentes deram solução para o problema. Enquanto isso, um dos direitos fundamentais, universais e indispensáveis ao ser humano, que é o acesso à água potável e ao saneamento básico, é negado a cerca de 700 famílias. 

“Fomos todos pegos de surpresa. Donas de casa lavando roupas, fazendo seus serviços rotineiros e, de repente, se viram sem água. Nesse exato momento, nós temos cerca de três mil famílias sendo afetadas diretamente, porque no bairro São Francisco, os moradores tiveram tempo para se mobilizar e não deixaram a Energisa desligar a bomba. São dois poços distintos”, contou a moradora e uma das lideranças locais, Marivani Reis, à AGÊNCIA AMAZÔNIA.

Com carrinho de mão e garrafas pets vazias, moradora sai em busca de água para abastecer a geladeira (Reprodução/Arquivos de Calama)

Marivani explica que a bomba que abastece os bairros São José, São João e Tancredo Neves é a que foi desligada. A rede levava água ao maior número de famílias habitantes de Calama. “Então, essas pessoas estão vivendo sem água. As escolas têm poço, porém, como mandar um filho para a escola sem o mínimo de higiene possível e até mesmo uma alimentação adequada?”, questiona a moradora.

A maior preocupação da comunidade é em relação à saúde das crianças, idosos e de pessoas que estão doentes. “Aqui, um garrafão de água, de 20 litros, custa R$ 15, e nós temos famílias que, às vezes, não têm esse dinheiro nem para comprar uma cartela de ovos para se alimentar”, lamentou a liderança.

A moradora e liderança local Marivani Reis (Reprodução/Acervo Pessoal)
Dívida milionária

De acordo com a associação dos moradores, a comunidade foi avisada, previamente, sobre o desligamento da energia elétrica nas unidades consumidoras em que as bombas estão instaladas. No entanto, um dia antes do corte, “o administrador do distrito avisou, por meio de áudio, em um grupo, que o desligamento havia sido suspenso”, explicou Marivani Reis.

“Foi comunicado o encerramento do antigo acordo entre Caerd e Ceron [antiga concessionária de energia], que não cobravam custo de água da comunidade. Quando a empresa privada, Energisa, assumiu o fornecimento de energia no Estado de Rondônia, ela não reconheceu os acordos entre a Caerd e Ceron, exigindo, por direito, da Caerd, o montante de R$ 1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil reais) de consumo de energia referente às duas bombas de abastecimento de água para mais de 4 mil moradores”, diz um documento que comunicou no desligamento à comunidade, obtido pela reportagem.

O texto foi elaborado durante uma reunião em uma igreja local, que teve participação de um vereador e representantes da prefeitura de Porto Velho. “Nos disseram que não devíamos nos preocupar, pois a prefeitura e a Procuradoria-Geral do município já estavam agindo junto à Caerd e a Energisa, e que o problema seria solucionado. Poucos dias depois aconteceu o corte”, esclareceu Marivani.

Ainda de acordo com a moradora de Calama, a Caerd nunca cobrou dos moradores pelo abastecimento hídrico na região. “E, hoje, tem-se um débito que está sendo jogado para a comunidade, mesmo estando em nome da Caerd”, revelou.

Moradores protestam cobrando apoio das autoridades e soluções dos órgãos competentes (Reprodução/Arquivos de Calama)
O que dizem a Caerd e a Energisa

Por meio de carta oficial à Câmara Municipal de Porto Velho, a Energisa Rondônia reafirmou que os desligamentos “ocorreram a pedido da Companhia de Águas e Esgotos de Rondônia”

“Ressaltamos que esta Concessionária Energisa agiu de acordo com o Artigo 140 da Resolução 1000 da ANEEL, que dispõe acerca do Encerramento Contratual a pedido do consumidor responsável pela titularidade da Unidade Consumidora (UC)”, consta também no documento.

Já em um vídeo, o diretor técnico operacional da Caerd, em Porto Velho, Lauro Fernandes, negou que a companhia tenha pedido o desligamento da concessionária. “O ofício que foi encaminhado referente a esse tema foi do cancelamento das faturas que estavam vindo à Caerd, referente às unidades consumidoras às quais a Caerd não efetivou nenhum contrato e, portanto, não pertencem ao acervo da Caerd”, afirmou Fernandes.

O diretor técnico operacional da Caerd, em Porto Velho, Lauro Fernandes (Caerd/Reprodução)

“Amanhã, dia 2 de agosto, está prevista uma audiência judicial entre a prefeitura de Porto Velho, a Energisa e a Caerd para tratar desse problema (…) A Caerd se coloca à disposição para poder receber toda a estrutura do sistema e da manutenção e, consequentemente, fazer o cadastro dos clientes para que haja, também, a contraprestação do serviço”, disse ainda o diretor técnico.

CPT acompanha

A situação é acompanhada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT-RO). “É muito fácil violar os direitos de um distrito que está longe e que a mídia não está vendo”, lamentou o agente da CPT-RO Luciomar Monteiro da Costa. 

Ele cita, ainda, várias outras violações pertinentes na região. “Calama não tem coleta de lixo. O lixo ou é queimado ou é jogado na beira do barranco. O nosso posto de saúde que atende a toda a região, chegando a cerca de 10 mil pessoas, está em situação precária, com fungos, paredes trincadas, móveis velhos e funcionários que operam no limite. Agora, temos a situação da falta de água, que também é muito grave”, contou Monteiro da Costa. 

“Essa água não está sendo distribuída da forma que deveria. A Caerd nunca colocou hidrômetros, nunca fez a tubulação adequada para que a água chegasse na casa de todo mundo. Não cobram, mas também não assumem o serviço. O que nós queremos é que a Caerd assuma, de fato, a distribuição da água e que monte uma base de tratamento para que a população saiba a água que está consumindo. Não estamos nos omitindo de pagar taxa, nós queremos ser atendidos dentro do que diz a lei”, finalizou o agente da CPT-RO.

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