Entenda o caso da Prefeitura de Iranduba, no AM, que aterrou igarapé, matou espécies e desolou agricultores

Pescadores no Igarapé Santa Rosa (AM) remam em meio a peixes mortos após obra ilegal (Márcio Silva/Revista Cenarium Amazônia)

26 de agosto de 2023

15:08

Marcela Leiros – Da Agência Amazônia

MANAUS (AM) – “Por três dias, os peixes tentaram se salvar após o aterro no igarapé, mas não conseguiram. O barro e o material de construção jogados nas margens reduziram o oxigênio da água. Centenas de espécies morreram com a contaminação”, relata o agricultor José Jânio, 56, à REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA, sobre a obra executada pela Prefeitura de Iranduba (a 27 quilômetros de Manaus), no dia 17 de agosto, no Igarapé Santa Rosa, que se interliga ao Rio Solimões, na Comunidade São João Batista. A CENARIUM foi ao local e constatou que na região quase 400 famílias utilizavam o igarapé para pesca e agricultura.

A ilegalidade da obra da Prefeitura de Iranduba no Igarapé Santa Rosa foi confirmada pelo Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). Segundo a autarquia, a obra que ocorreu para restaurar uma via de acesso ao ramal Jandira, na Comunidade Santa Rosa, é irregular. “Foi feita sem a autorização prévia expedida pelo Ipaam, ocasionando a obstrução do fluxo natural do corpo hídrico (Igarapé Santa Rosa), o que gerou a morte de peixes na área alagada formada pelo barramento”, pontuou o Ipaam.

Barragem no Igarapé Santa Rosa construída pela Prefeitura de Iranduba no AM (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium Amazônia)

O instituto informou que após a constatação da irregularidade – denunciada em vídeos na internet -, a Prefeitura de Iranduba foi notificada e foi emitido um auto de infração, além da determinação de providências imediatas quanto à desobstrução da tubulação que interliga o Igarapé Santa Rosa ao Rio Solimões. “Outras informações sobre a obra foram solicitadas, visto que a atividade está classificada como potencial poluidor degradador, um auto de infração foi emitido.”

Desolados

José Jânio foi o primeiro morador da Comunidade São João Batista a registrar e publicar, na internet, a morte dos peixes no Igarapé Santa Rosa. O vídeo de Jânio viralizou, no Amazonas, e chamou a atenção dos órgãos de fiscalização. “O meu coração ficou assim… você não imagina o quanto a gente sofreu, meu sogro estava querendo chorar“, lamentou Jânio.

A dona de casa Maria Oliveira Pinto, 45, preocupa-se, agora, com o futuro de famílias que tinham no igarapé uma fonte de alimentos, com os peixes, e com a irrigação de plantações de verduras, frutas e legumes. “Todos estão preocupados com o que vai acontecer agora com o igarapé. Ele vai ser recuperado? Os peixes vão voltar? A água vai ficar como era antes?”, pergunta.

Entre os peixes que morreram com a obra da Prefeitura de Iranduba, no Igarapé Santa Rosa, estão as espécies de branquinha, curimatá, bodó, pacu e piranha. Algumas ainda foram vendidas pelos moradores do Jandira, que também pegaram para consumo próprio.

O futuro sem respostas sobre o Igarapé Santa Rosa também preocupa o comerciante Adelino Souza, 51, que era beneficiado pela pesca e irrigação das plantações das famílias de agricultores. “Vejo os amigos, pescadores e agricultores da comunidade, com futuro incerto, e isso afeta todo mundo. Não quero vê-los sem sustento, e eu também dependo deles. O meu comércio depende da prosperidade dessas famílias”, lamentou.

Esse peixe vem do Rio Negro, vem da água preta, e quando as águas vão baixando, eles migram para o [Rio] Solimões, para depois subir o rio. Foram três dias eles tentando sair [para o Rio Solimões]. Eles iam lá na ‘boca’ e voltavam, a água vinha negra, eles fizeram três tentativas. Na terceira, já estava pouca água, e cada dia vinha mais peixe e não conseguia passar, aí faltou oxigênio. Dava dó de olhar isso aqui“.José Jânio, morador do ramal do Jandira

O agricultor José Jânio mostra os peixes mortos no Igarapé Santa Rosa (Márcio Silva/Revista Cenarium Amazônia)
Explicação

A temperatura elevada da água pode afetar os peixes, que são ectotérmicos, ou seja, são dependentes da temperatura ambiental, mesmo que tenham outras formas para amenizar esse calor, explica o doutor em Ciências Pesqueiras e professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), Adailton Silva.

Segundo ele, a falta de oxigênio é provocada tanto pelo aumento da temperatura quanto pela diminuição da lâmina d’água, assim como também pela eutrofização, o aumento de despejos de esgotos e resíduos domésticos no lago, o que pode levar à morte de peixes.

A mortandade é causada pela diminuição da lâmina d’água (profundidade) e pelo aumento das temperaturas, mas isso acontece em vários lagos e rios, na época da seca na Amazônia, independente da ação do homem“.Adailton Silva, doutor em Ciências Pesqueiras e professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA).

O professor explica, ainda, que é necessária uma análise mais técnica para apontar a causa da morte dos peixes no Lago Santa Rosa, que migram procurando locais mais adequados, o que pode ter ocorrido no local. O aumento da temperatura, a falta de chuva e a seca do lago são consequências das mudanças climáticas.

Muitos possuem estratégias, como, por exemplo, se esconder em áreas com vegetação, como capinzal, chavascal ou matas ciliares, tocos de árvores caídas, banco de macrófitas aquáticas ou em tocas no leito. Não podemos afirmar se uma ação antrópica (causada pela prefeitura ou pelos residentes) seria a causa da mortandade, que poderia simplesmente ser natural ou provocada pelas mudanças climáticas“, concluiu o professor.

Peixes mortos boiam em igarapé aterrado na Comunidade São João Batista (Márcio Silva/Revista Cenarium Amazônia)
‘El Niño’

A Secretaria Municipal de Meio Ambiente da Prefeitura de Iranduba negou, à imprensa, ilegalidade da obra no ramal Santa Rosa e culpou o El Niño, um fenômeno que gera modificações significativas na distribuição da temperatura da superfície da água do Oceano Pacífico e pode gerar alterações globais no clima.
Segundo a secretaria, o fenômeno El Niño pode ter agravado a vazante dos rios da Amazônia e reduzido o volume de água no Igarapé Santa Rosa, em Iranduba. A seca ou vazante é um fenômeno natural da região amazônica, de descida dos rios, que ocorre no período de abril a setembro.

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Revisado por Adriana Gonzaga