‘Falta de empatia’, dizem advogadas sobre desembargador chamar atenção por barulho de bebê; ‘tempestade em copo d’àgua’, rebate o magistrado

Elci Simões, chamou a atenção da advogada e pediu para Malu Borges "ver a ética" (Reprodução/ Youtube)

23 de agosto de 2022

10:08

Priscilla Peixoto – Da Agência Amazônia

MANAUS – “Não há como discursar por ética se a mulher não é tratada com a devida empatia e respeito“, declara a advogada Amanda Pinheiro sobre o episódio vivido pela também advogada Malu Borges Nunes durante sessão plenária realizada em formato on-line, na manhã desta segunda-feira, 22, na qual foi constrangida pelo presidente da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), desembargador Elci Simões, por estar com a filha bebê presente no vídeo.

Durante a videoconferência, que tinha o total de seis participantes, Elci Simões chamou a atenção da advogada ao mencionar que os barulhos feitos pelo bebê de seis meses, que estava no colo da mãe, em home office, atrapalharia a sessão.

Queria pedir para a doutora Malu que, aí, quebra o silêncio das sessões do tribunal, interferências outras na sala em que a senhora está. Isso prejudica os colegas. Não deixe que outras interferências, barulhos, venham atrapalhar nossa sessão porque é uma sessão no tribunal, não pode ter cachorro latindo, criança chorando. Se a senhora tiver uma criança, coloque no lugar adequado. São barulhos que tiram a nossa concentração. A senhora precisa ver a ética da advogada“, salientou Elci Simões.

Em resposta e, visivelmente, constrangida, a advogada Malu Borges Nunes agradeceu o desembargador, disparando: “Ok, Excelência. Agradeço a compreensão“. A AGÊNCIA AMAZÔNIA tentou contato com a advogada mas, até o fechamento desta matéria, não obteve retorno.

Veja vídeo:

(Reprodução/Youtube)

“Sem prerrogativas”

Na leitura de Amanda, que também é presidente da Associação Manas (que trabalha o combate da violência contra mulher), a mulher ainda sofre limitações impostas pela sociedade para o exercício da autonomia, autodeterminação e profissão.

A mulher advogada e mãe não tem prerrogativas previstas em nosso estatuto, entre eles, prioridade nas vagas de estacionamento dos fóruns, prioridade na realização das audiências na pauta do dia, tempo para amamentação, assim como quando em exercício do puerpério [período após o parto até que o organismo da mulher volte às condições normais pré-gestação]. Não há como discursar por ética se a mulher não é tratada com a devida empatia e respeito“, diz a profissional que é mãe de um menino de 2 anos e 9 meses.

“Machismo no setor”

Para a advogada Laila Alencar é impossível crer que “um código criado em meados de 1994″ incluiria algum artigo mencionando a realização de audiências e proibição de sons de crianças que não sabem falar e precisam da companhia da mãe. Para a advogada, além do Código de Ética, nesses casos, é necessário a empatia.

“Este episódio só retrata que o poder judiciário, como um todo, não tem estrutura para lidar com profissionais que exercem, além de suas profissões, a maternidadeO desembargador, dentre outras coisas, diz que é preciso que a advogada observe o Código de Ética da advocacia, quando diz que o som de filhos estão interferindo e quebrando o silêncio no tribunal (…) É preciso, nesses casos, contar com o bom senso e a empatia, o que faltou no episódio ocorrido“, diz a advogada que também é mãe de um bebê de oito meses.

(Reprodução/ Internet)

A profissional ressalta, ainda, alguns fatores que considera machista no ambiente jurídico. “A ausência de berçário, nos prédios institucionais, por exemplo, apenas reflete o machismo que habita nesse setor. Advogar e maternar chega a ser violento, não apenas pela falta de acolhimento de colegas, clientes e servidores, mas também pela falta de empatia das autoridades que representam o estado democrático de direito que tem como principal compromisso a Justiça”, completa.

“Tempestade em copo d´água”

Para a AGÊNCIA AMAZÔNIA, o desembargador Elci Simões afirmou não ser a primeira vez que necessitou chamar a atenção da advogada. Considerou a repercussão do vídeo uma “tempestade num copo d’água” e ressaltou que não houve desrespeito durante a sessão.

Não é a primeira vez que pedimos, educadamente, para a doutora evitar levar cachorro latindo e criança chorando durante a sessão, pois, de acordo com a lei, cabe ao juiz dirigir as audiências e sessões dos tribunais . Não houve nenhum desrespeito às prerrogativas do advogado, apenas foi chamado a atenção sobre a liturgia das audiências e sessões dos tribunais, que deve ser respeitada por todos os participantes, uma vez que, sem advogado, não se faz justiça. Há uma tempestade num copo d’água“, considerou Simões.

O desembargador ressaltou que o pedido “não foi nada contra a advogada”, mas apenas para manter a ordem, no local da sessão, nos termos do dispositivo do Conselho Nacional de Justiça e citou, ainda, um trecho da Resolução N° 465, de 22/06/2022, do CNJ, no qual destacou que os magistrados, ao presidirem audiências:

I – velem pela adequada identificação, na sessão, de promotores, defensores, procuradores e advogados, devendo aquela abarcar tanto o cargo, a ocupação ou função no ato quanto nome e sobrenome;

II – zelem pela utilização de vestimenta adequada por parte dos participantes, como terno ou beca; e

III – certifiquem-se de que todos se encontram participando da videoconferência com a câmera ligada, em condições satisfatórias e em local adequado.

Manifesto de solidariedade

Em nota, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Seccional Amazonas, divulgou uma nota na noite desta segunda-feira, 22, por meio da diretoria e da Comissão Permanente da Mulher Advogada, na qual considerou que a advogada Malu Borges não cometeu qualquer infração disciplinar e nem violou preceito do Código de Ética e Disciplina da OAB.

O texto afirma, ainda, que o “advento das audiências virtuais possibilitou a muitas mães advogadas, como a profissional ora apoiada, exercer a advocacia com plenitude que, em outros tempos, poderiam tão somente exercer a maternidade”.

O mercado jurídico evoluiu. Todavia, a maternidade ainda é uma estranha fissura em nossa sociedade. Assim, a OAB/AM repudia a posição do desembargador Elci Simões de Oliveira, em face da advogada, que não descumpriu sua ética profissional, e apenas exerceu legalmente o seu mister“, repreende o documento.