‘Ficou no passado, é uma lembrança’, diz ex-presidente da Funai sobre órgão defender direitos indígenas

O indigenista Sydney Possuelo. (Dida Sampaio/ Estadão - 14/12/2018)

09 de julho de 2022

12:07

Marcela Leiros – Da Agência Amazônia

BRASÍLIA – “A Funai era bastante ativa, sempre estivemos muito longe da perfeição, mas tinha uma postura de defesa dos povos indígenas, de demarcação das terras”. A declaração do sertanista, indigenista e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Sydney Possuelo resume muito a experiência vivida na instituição há 30 anos. Hoje, o órgão e seu presidente, Marcelo Xavier, são alvos de críticas e responsabilizados pela omissão na proteção dos povos originários, reforçada pelos recentes acontecimentos na Terra Indígena (TI) Vale do Javari, no Amazonas.

Nesta semana, fez um mês dos assassinatos do servidor licenciado da Funai Bruno da Cunha Araújo Pereira e do jornalista britânico Dominic Mark Phillips, o “Dom Phillips”, próximo à terra indígena. Os dois foram mortos no dia 5 de junho. Quatro homens, que atuavam com a pesca ilegal no Vale do Javari, estão presos por suspeita de envolvimento nos crimes.

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Bruno da Cunha Araújo Pereira e o jornalista britânico Dominic Mark Phillips, o “Dom Phillips” (Foto Gary Carlton/The Observer)

Possuelo foi servidor da Funai por 42 anos e esteve à frente do órgão de 1991 a 1993. Foi quem criou a Coordenação-Geral de Índios Isolados, substituída depois pela Coordenação-Geral de Índios Isolados e de Recente Contato, setor da Funai responsável por proteger povos isolados, coordenado por Bruno. À AGÊNCIA AMAZÔNIA, o indigenista falou sobre como o Governo Bolsonaro desviou instituições dos seus propósitos.

“Essas duas questões, ambiental e indígena, foram banidas praticamente do governo. Ele [o presidente Jair Bolsonaro] administrando o País, utilizou os órgãos, como o Meio Ambiente a questão indígena, para ser contrário ao índio. O Meio Ambiente passou a derrubar a mata e a queimar, e a questão indígena foi virando esse caos terrível que redunda no que a gente vê hoje”, disse.

O sertanista Sydney Possuelo com índios Matís, em 1996. (Foto arquivo pessoal: Heidelberg Primescan)

O indigenista se refere às políticas antiambientais e anti-indígenas promovidas pelos respectivos Ministério do Meio Ambiente e Funai e seus chefes. Nesta semana, comissões externas criadas na Câmara dos Deputados e no Senado pediram o afastamento imediato do presidente da Funai, Marcelo Xavier, pela omissão à frente do órgão. Foi enquanto esteve à frente da fundação que Possuelo demarcou as duas maiores terras indígenas do País: Yanomami e Vale do Javari.

Funai atuante

“Cento e sessenta e seis terras indígenas demarcadas no período, naquele ano do Collor [Fernando Collor de Mello, ex-presidente do Brasil] nós duplicamos a superfície de terra indígena do Brasil, de 550 mil quilômetros para um milhão e pouco. Era bastante atuante [a Funai], se demarcava bastante. Hoje, isso ficou no passado, é uma lembrança, foi se perdendo com o tempo e chegou ao ápice com o Bolsonaro. Ele já entrou no governo predisposto contra os povos indígenas, e depois que ele entra no governo você vê predisposição dele nas questões que envolvem o meio ambiente”, explica Possuelo.

O sertanista Sydney Possuelo após receber a homenagem das lideranças indígenas no ATL 22 (Nay Jinkss/Apib)

Proteção dos povos isolados

Há 20 anos, em junho de 2002, Sydney Possuelo coordenou, no Vale do Javari — região que concentra o maior número de povos isolados do mundo — a última grande expedição indigenista na Amazônia para estabelecer contato com esses indígenas. Nessa expedição estava Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, um dos suspeitos de assassinar Bruno e Dom Phillips.

Sydney Possuelo conheceu Bruno Pereira, mas não chegaram a trabalhar juntos. Um foi exonerado do setor que criou em 2006, o outro ingressou na Funai em 2010. “Eu lamento, porque o Bruno nunca trabalhou diretamente comigo, o conheci. Era um bom funcionário, um homem dedicado”, afirma.

Sertanista de profissão, Possuelo iniciou a carreira trabalhando com os irmãos Villas Boas junto aos povos indígenas da região do Rio Xingu. Nos anos 1980, mudou o conceito sobre a melhor maneira de proteger os índios brasileiros. O indigenista falou sobre a mudança da política de contato com indígenas isolados da fundação, implementada e promovida por ele, após entender que se aproximar fisicamente de povos isolados representava uma ameaça a eles próprios.

“Eu vinha trabalhando para que o País mudasse a forma de lidar com o índio isolado. Em vez de entrar em contato, eu consegui mudar essa política, introduzi dentro da Funai a política de não mais o Estado brasileiro fazer contato com os povos isolados, mas demarcar os seus territórios e proteger o meio ambiente”, disse ele.

Para finalizar, Possuelo reforça que, em sua vivência, entendeu que os povos indígenas sabem e reconhecem a importância do Estado na proteção dos seus direitos, apesar das mudanças dos últimos anos.

“Os indígenas sabem da importância do Estado estar ao lado deles, porque é por meio do Estado que se demarca as terras. Alguns anos antes, por várias vezes, aí a gente já entra quase no período dos militares, varias situações conflagradas da Funai, os índios estiveram em Brasília e abraçaram a Funai, para evitar ação de invasão da Funai por forças policiais. Eles sempre tiveram noção da importância do Estado estar ao lado deles. E, naquela época, o Estado estava mais ao lado deles, embora fôssemos deficientes em algumas coisas”, conclui.