Jovem volta à Venezuela para resgatar cadela após cinco anos morando no Brasil

Gabriel Eduardo Sanabria e Perla (Ricardo Oliveira/Agência Amazônia)

05 de março de 2023

17:03

Vinicius Leal e Dayana Daide – Especial para Agência Amazônia

MANAUS – O que te motivaria a percorrer 13,4 mil quilômetros de distância numa viagem de ida e volta cara, longa e cansativa, em certa parte perigosa e imprevisível, para rever um grande amor e trazê-lo de novo para perto de você? Foi o que o venezuelano Gabriel Eduardo Sanabria, de 25 anos, fez ao cruzar um continente inteiro para resgatar sua cadela “Perla”, uma Golden Retrevier de 10 anos de idade. Os dois estavam afastados há cinco anos, desde que ele mudou para o Brasil fugindo da crise econômica e política no País – morou em Manaus por quatro anos e há um ano vive em Florianópolis.

Eduardo passou pela mesma experiência que muitos conterrâneos seus vivenciam ao cruzar as fronteiras da América Latina: ter que sair da Venezuela em busca de uma vida melhor e abandonar família, amigos e animais de estimação, independentemente da saudade.

“Eu tive que ir embora. Ver a situação que eu estava vivendo no núcleo familiar, de não ter comida suficiente. Ver meus pais colocando pouca comida no prato deles e mais para mim. Tinha vezes que eu comia na rua, fazia algo na casa de uma amiga para comer e, ao chegar em casa, dizia que já tinha comido para dar oportunidade de meus pais comerem. Essa situação dentro de casa me fez acordar e dizer ‘eu tenho que tomar uma atitude’”, explica.

A vinda para o Brasil e a amarga despedida

Em 2018, no meio da forte recessão, Eduardo, com 19 anos, iniciava a vida adulta sem nenhuma perspectiva de futuro. A faculdade pública de Enfermagem que estudava vivia em greves constantes e o laboratório clínico em que trabalhava havia fechado por falta de insumos e recursos. Precisava partir e deixar Perla para trás.

“Eu me deparei sem nada e disse ‘e agora, o que eu faço?’. Senti muito medo na hora de sair. É um mix de emoções, um sentimento difícil de descrever, uma felicidade porque tu vai (sic) para um novo lugar, com novas expectativas, mas também um vazio dentro de ti porque está largando e abrindo mão de muita coisa que ama, de uma vida, das pessoas que tu gosta, dos teus costumes, da tua cultura, da tua comida, do teu dia a dia, para procurar uma coisa melhor, só que essa ‘coisa melhor’ não chega de uma vez, demora”, relata à reportagem da REVISTA CENARIUM.

Eduardo voltou à Venezuela para resgatar sua cadela (Arquivo pessoal)

A cadela ficou sob os cuidados dos pais dele, em Valência, sua cidade natal, situada a 174 km de Caracas, capital da Venezuela. “Meus pais davam o melhor para cuidar dela, só que eles tinham outras coisas com que se preocupar, a casa, sair atrás de gás, água, comida. Mesmo assim, a cadela estava em boas condições, era uma cachorra ativa, saía para passear, estava bem asseada e a alimentação em dia”.

A cadela tem 10 anos (Arquivo pessoal)

Anos difíceis e o aumento da saudade

Após quatro anos vivendo entre Pacaraima e Boa Vista, em Roraima, e Manaus, capital do Amazonas, com situações de fome, tendo morado nas ruas e de favor, aguentando roubos, violência, subempregos, exploração física e psicológica, preconceitos como homofobia e xenofobia e outras violações de direitos humanos comuns a imigrantes e refugiados, Eduardo parte para uma nova cidade, Florianópolis, no Sul do Brasil, ainda mais longe de Perla. Ele contou com ajuda e orientação de amigos venezuelanos que já viviam na capital catarinense.

Enquanto isso, a situação da sua família na Venezuela piorava. “Meu pai tinha um problema de saúde, foi para a Colômbia fazer uma cirurgia e minha mãe foi junto. Então, a minha cadela ficou em mãos de terceiros, que não cuidaram bem dela. Eu enviava dinheiro para comida, mas não via o resultado. Percebi por fotos e vídeos mudanças físicas e emocionais nela. Estava com pulgas, carrapatos, falta de peso. Ela só ficava feliz ou animada na hora que escutava minha voz na vídeo-ligação. Pensei que pudesse morrer por tristeza e depressão. Me desesperei”.

Eduardo confeccionou camisa com a foto de Perla (Arquivo pessoal)

A vontade de salvar a cadela e trazê-la para perto só aumentava, mas era desproporcional à distância e à situação financeira de Eduardo, que chegou a cogitar contratar uma agência especializada em translado de animais, mas o preço era irrealizável. Com a cadela cada vez mais doente, a eutanásia, ato de proporcionar morte sem sofrimento, também passou pelo seu pensamento. Além disso, todo o dinheiro que Edu havia guardado até ali precisou ser enviado à família para tratamento de saúde do pai.

Resgate de Perla o trajeto pela estrada

Após mais um ano juntando economias, Eduardo estava decidido em ir até a Venezuela resgatar Perla, mesmo com os altos custos da viagem, as exigências veterinárias e os riscos sabidos do transporte de um animal idoso por um longo trajeto. Fez campanha pedindo ajuda na internet, mas sem sucesso. Então pediu demissão do emprego em Florianópolis, o primeiro com carteira assinada oferecido a ele no Brasil, e usou o dinheiro da rescisão para iniciar a empreitada.

O venezuelano pediu ajuda na internet (Arquivo pessoal)

Embarcou para Manaus no dia 1º de dezembro de 2022. A passagem aérea, no valor R$ 1.200, já incluía a volta. Passou uns dias na capital amazonense para rever amigos e, em seguida, partiu de ônibus até Caracas, numa viagem pela BR-174 ao custo de R$ 750. Depois, de Caracas para Valência por R$ 300 o trecho, convertido do dólar.

Dias antes do Natal, Eduardo reencontrava Perla e sua família. “Quando eu cheguei na Venezuela, ela estava em um lugar onde batia muito sol, e quando chovia não tinha resguardo. Ficava isolada, tinha muito lixo ao redor. Ela tinha um hálito nojento, estava suja, fedendo. Ela comia restos de comida e por conta da má alimentação, o pelo começou a cair, perdeu dentes, o olho dela estava infeccionado. Dei um banho nela, comprei ração e comecei a cuidar”.

Dias após o Natal, os dois embarcariam rumo ao Brasil: foram de carro fretado de Valência a Santa Helena, na fronteira, numa viagem pela estrada que durou dois dias, incluindo o trajeto em si e paradas para alimentação, dormir, necessidades básicas, além de pedágios e blitz. O trecho todo custou, em média, R$ 2.500 na conversão ao real. Chegaram a Pacaraima numa sexta-feira à noite e, por isso, tiveram mais custos com hospedagem numa pousada até reabrir o sistema da imigração: mais R$ 525.

“As pessoas se aproveitavam da condição de viajar com uma cachorra e cobravam as coisas sempre acima do valor normal”, explica. Já do lado brasileiro, também pagou mais caro. “Em Pacaraima, me cobraram três passagens só para eu ir com ela até Boa Vista, uma passagem minha e duas por ela”. Custo do trecho Pacaraima-Boa Vista foi de R$ 260 e o tempo de viagem durou, aproximadamente, quatro horas.

Eduardo e Perla no trajeto de volta para o Brasil (Arquivo pessoal)

Quando chegou à capital roraimense, Eduardo já estava sem dinheiro. “Foi mais do que estava no meu planejamento. Já estava zerado. Comecei a ligar para conhecidos, amigos que pudessem me ajudar”. Na rodoviária de Boa Vista, conheceu um viajante que iria para Manaus. “Ele se ofereceu para nos levar, tinha espaço (no veículo) e me convenceu a viajar com ele, só que estava me cobrando R$ 200 por cada lugar e a cadela ocupava dois. Então foi mais 600 reais de Boa Vista em Manaus”, relembra. O tempo de viagem foi de, aproximadamente, de 15 horas na estrada.

Viagem de avião e custos veterinários

A volta para Florianópolis já estava comprada, mas a passagem aérea da cadela foi paga horas antes do embarque: R$ 700, um preço tabelado para animais até 25 kg. “A gente tem que avisar a companhia que vai viajar com um pet. Eles pedem as medidas dela, porte, peso, idade, e fazem a confirmação da reserva”.

A conta aumentaria ainda mais devido aos itens veterinários necessários: a caixa de transporte tipo 4, do porte da Perla, saiu a R$ 1.390, os recipientes água-comida específicos de transporte aéreo R$ 120, o atestado veterinário a R$ 80, remédio antiparasitário e vacinas a R$ 200. “Tive que esperar chegar em Manaus para comprar por causa das requisições que pediam. Se eu comprasse na Venezuela, não ia dar certo”.

No último 20 de janeiro, os dois embarcaram para Florianópolis. Perla foi como “carga viva” no porão da aeronave, numa viagem de sete horas com uma parada em São Paulo. Hoje, a cadelinha pode finalmente viver ao lado do “pai”, compartilhando a atenção com outros três pets da casa compartilhada com colegas venezuelanos: um cão manauara e duas gatas catarinenses.

“Além do compromisso e do sentimento que tenho por ela, sentia que eu tinha uma dívida com a Perla, por ter deixado ela e não ter trazido na primeira vez que vim. Hoje estou mais feliz com ela ao meu lado”, afirma.

Perla preparada para embarcar para Florianópolis (Arquivo pessoal)

A paixão pela língua e cultura brasileiras

Eu sou Eduardo, estou estudando português e um dia vou morar no Brasil”. A frase escrita num papel aos 14 anos de idade, despretensiosamente para treinar o idioma, era uma profecia do futuro. Apaixonado pela cultura brasileira, Sanabria adquiriu sozinho fluência na língua portuguesa assistindo videoaulas gratuitos na internet, ouvindo músicas e assistindo séries e novelas do Brasil, como “Xica da Silva”, “Chocolate com Pimenta” e “O Cravo e a Rosa”.

“Assistia tudo em espanhol. Quando me interessei pelo idioma, assisti de novo em português. Só ‘Alma Gêmea’ eu assisti quatro vezes”, explica. “Depois, passei a procurar as músicas (trilha sonora) das novelas. Antes de vir ao Brasil eu já escutava Marília Mendonça, Simone & Simaria, Maria Bethânia. Paula Fernandes foi a primeira que comecei a ouvir. Aí conheci o forró e me apaixonei. Quando escuto piseiro, parece que a alma sai do corpo”, brinca. “Hoje não costumo ouvir música em espanhol, gosto de músicas em português”.

A fluência em português e a habilidade com as palavras surpreendem até quem ouve. “Tem gente que não percebe a diferença do meu sotaque. Como tenho esse mesmo chiado na hora de falar, pensam que sou carioca, amazonense ou paraense. Aí eu falo ‘pela fé’ ou outra gíria e o povo diz ‘olha, bem manauara’. Em Florianópolis todos pensam que sou manauara ou paraense”.