‘Lutheria social’: escola ensina arte para comunidade da periferia de Manaus

Oficina de produção de instrumentos em Manaus (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

02 de junho de 2023

18:06

Ívina Garcia – Da Revista Cenarium

MANAUS – Unindo a arte de produzir instrumentos musicais, marchetaria a conceitos sobre teoria musical, a Escola de Lutheria da Amazônia (OELA), localizada no conjunto São Cristóvão, bairro Zumbi 2, na zona Leste de Manaus, forma jovens e adultos para a profissão de luthier. Fundada em 1998, pelo luthier e músico Rubens Gomes, conhecido como mestre Rubão, a escola já formou mais de 2.300 alunos para empreender e trabalhar na construção, conserto ou passando a profissão para outros jovens.

A instituição oferece curso com duração de dez meses a um ano, que incluem a confecção de instrumentos, a partir de madeiras doadas de manejo florestal, auxiliando na educação ambiental dos estudantes, sendo uma das primeiras escolas de lutheria a ter certificado para produção de instrumentos no mundo, de acordo com o consultor da Oela, Diego Freitas.

Oficina de produção de instrumentos em Manaus (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Nos primeiros anos da Oela, a gente recebia madeira de apreensões do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e da Polícia Ambiental, mas com o tempo esse tipo de doação deixou de fazer sentido para gente, porque muitas dessas madeiras utilizam trabalho escravo, e a gente refletiu que trazer esse significado para as peças não estava certo“, relata. Desde então, todas as madeiras são retiradas de floresta certificada.

O jovem músico Alexandre Vieira, 24, que percorre mais de 24 quilômetros todos os dias para aprender o ofício de luthier, é um desses apaixonados por música. Morando na comunidade indígena Parque das Tribos, no bairro Tarumã Açu, zona Oeste da cidade, Alexandre acorda todos os dias às 4h30 para conseguir chegar à sede da instituição.

Ao final do curso, cada aluno produz um instrumento e deve mostrar sua funcionalidade (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Alexandre conta que mora sozinho desde os 17 anos, e já passou por vários ofícios até se encontrar na lutheria. “Eu já trabalhei em muita coisa, saí de casa muito cedo e precisei me virar. Já fui de flanelinha e padeiro, mas sempre tive essa paixão pela música. Foi quando, um dia andando pelo Centro da cidade, descobri o ateliê do luthier Evaldo Castro, que também foi formado na Oela, ele me falou sobre o curso e fiquei um ano tentando entrar, mas não tinha vaga“, conta.

Além de aprender tudo sobre esse universo de montagem e conserto de instrumentos, também consigo aqui aprender a ter uma visão diferente do que quero para minha vida. Eu sempre fui muito dedicado e corri atrás. A Oela mudou muito a minha vida“, relata, ao lembrar que também encontrou acolhimento.

Alexandre Vieira, 24, aluno da oficina de lutheria (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A equipe me acolheu aqui, me tratou como filho e eu acho que é isso. A Oela é essa mãe que abraça todo mundo, que acole e te faz querer ser alguém melhor“, reflete o jovem, que se espelha nos amigos já formados, e quer abrir seu próprio ateliê.

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O amor pela música é algo compartilhado entre os estudantes do curso. Como, por exemplo, Vinicius do Carmo, 19, graduando do curso de Música na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), focado no gênero erudito e faz o curso de luthier na Oela.

Ofício de Luthier é ensinado em escola localizada na periferia de Manaus (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Senti que o meu interesse pela música passava da vontade de ser apenas mestre no instrumento, e foi isso que me impulsionou a procurar a Oela, para ser mestre na construção também. Hoje em dia tem muitos músicos que não entendem sobre a anatomia do próprio instrumento, então, o meu interesse veio de unir essas duas partes“, conta.

Vinicius descobriu a existência da Oela em 2020, por meio de uma matéria jornalística na televisão sobre o falecimento do mestre Rubão, ocorrido em maio daquele ano, vítima de uma parada cardiorrespiratória. Ele conta que antes mesmo de entrar na Oela já tinha aprendido em casa a construir de forma bem amadora, instrumentos de percussão, capoeira e samba.

Vinicius do Carmo, 19, aluno de lutheria da Oela (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Com esse curso consigo aprimorar minha visão, expandir minha mente. Quando terminar o curso, planejo formar minha oficina e passar o conhecimento adiante, assim como nossos mestres fazem e quem sabe viver a partir da construção dos meus instrumentos. O ofício de luthier é muito importante porque ele sabe exatamente o que o músico precisa e consegue passar isso para o instrumento“, diz.

Assim como Alexandre, o jovem também precisa se deslocar do outro lado da cidade para chegar na instituição. Vinicius mora no bairro Cidade Nova, localizado na zona Norte de Manaus. “Acordo 6h30, às vezes 5h da manhã, pego dois ônibus para vir para cá e conseguir chegar às 8h. E isso é amor mesmo a música. Quero estar aqui“, relata.

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Oficina de Lutheria em Manaus (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Para ele, muitas possibilidades são abertas a partir do curso de lutheria, principalmente por se tratar de um curso adaptado e com a visão daqueles que defendem a Amazônia e conhecem os limites e dificuldades. “Acredito que a Oela está abrindo possibilidades que eu nunca nem imaginei que eu teria tão cedo, coisas que passaria dez anos ou mais para conseguir e eu já vou sair daqui capacitado, assim como o mestre Rubão e até nosso instrutor Renato, que foi aluno da primeira turma, em 1998“, avalia.

Desemprego e desocupação

A busca por uma profissão, mesmo que fora dos padrões de formalidades, tem se destacado no Estado. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada em maio, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a informalidade no Amazonas é a segunda maior do País, chegando 57,2% no 1º trimestre de 2023.

A capital do Amazonas, Manaus, possui a terceira pior taxa de desocupação, aponta a PNAD Contínua, atingindo 12,8%, no 1º trimestre de 2023. Em números absolutos, o Estado apresentou 200 mil pessoas desocupadas; sendo 154 mil, na região metropolitana; e 144 mil, considerando somente a capital.

O curso de luthier da Oela ensina a confecção de peças musicais a partir de madeiras amazônicas (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Transformação

Renato Montalvão, 39, aluno formado na primeira turma da Oela, possui ateliê próprio e cuida do curso de lutheria na instituição. Historicamente, segundo ele, o ofício era passado de pai para filho, mas com a industrialização, a formação de luthier foi ficando cada vez mais escassa, apesar da alta demanda, que acaba concentrando as compras em produtos internacionais.

Instrumentos da Oela carregam símbolos e desenhos amazônicos (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

Luthier é uma profissão muito rara, antigamente passada de pai para filho, e hoje é um mercado que a gente vê uma demanda de muito músico, mas pouco luthier. É como se tivesse uma demanda de muitos carros, mas de poucos mecânicos“, conta.

Ele lembra que de início, quando soube do curso na Oela, o interesse principal era em aprender a tocar instrumentos, mas conforme o tempo passou, a paixão pela lutheria falou mais alto. “Acabei me identificando muito mais com a técnica na lutheria, passei muito tempo dando aula aqui na oficina, depois viajei com a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância), passei conhecimento para outros Estados e voltei para casa [Manaus]“, conta.

Além da construção dos instrumentos, os alunos aprendem teoria musical (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

A gente tem aqui em outros luthier que se formaram aqui, em Manaus, outros que agora trabalham no Rio de Janeiro, Acre, Rio Grande do Sul e outros Estados, que possuem seu próprio ateliê ou trabalham na manutenção em lojas de instrumentos“, explica.

O processo é completamente artesanal, voltado à produção das peças a partir de poucas ferramentas, com o que o mercado da marcenaria oferece. “Em Manaus, ainda é muito escasso a venda de ferramenta específica para luthier, então, o curso é voltado para se trabalhar artesanalmente, sem muito maquinário, possibilitando exercer a profissão a partir de qualquer ferramenta ou produtos na marcenaria“, explica. “São adaptações feitas para poder garantir o acesso à profissão, para que eles possam montar seu ateliê em casa com poucas ferramentas“, afirma o instrutor.

Presidente Lula recebe instrumento produzido pela Oela, em 2007, ao lado da ministra Marina Silva (Reprodução/Acervo Pessoal)

Visitas

Montalvão conta que apesar de não ser uma profissão popular, a lutheria se destaca por trazer originalidade aos produtos musicais. “A principal diferença de um instrumento feito por um luthier é a questão da exclusividade da peça e como ela pode ser personalizada para o gosto de cada cliente, a partir da sonoridade que ela vai transmitir“, diz.

O instrumento é feito sob medida. E aqui no caso além da matéria-prima ter esse valor agregado por ser da Amazônia e de manejo florestal, nós temos a diferença do industrial concebido a partir de lâminas compensadas que não diferem o som“, explica.

É com essa originalidade que a Oela já presenteou e vendeu instrumentos para diversos artistas, influenciadores e políticos, como, por exemplo, o – atual – Rei Charles III, da Inglaterra, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), e os cantores Milton Nascimento e Lenine.

Visita do então príncipe Charles da Inglaterra, e a duquesa de Cornualha, Camilla Parker-Bowles, na sede da Oela em Manaus, no ano de 2009 (Reprodução/Acervo Pessoal)

O projeto

Conforme a coordenadora de projetos da Oela, Vanessa Praia, esse curso, sendo apenas um da grade oferecida gratuitamente pela instituição, abrange os três pilares que regem a organização. “Temos três pontos centrais que trabalhamos na Oela, os quais são a educação, políticas públicas e geração de emprego e renda, com ações voltadas a ensinar o público jovem e adultos em diversas atividades, colaborando também para a retirada desses jovens das ruas e da marginalidade, foi pensando nisso que a Oela foi criada e com esse pensamento que continuamos trabalhando“, diz.

A Oficina Escola de Lutheria da Amazônia (Oela) é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, que desenvolve ações de educação para sociedades sustentáveis, de cunho participativo, de educação popular cidadã e socioambiental. Além da escola de lutheria, a instituição desenvolve atividades relacionadas à música, arte, esporte, educação ambiental, qualificação profissional, atendimento psicossocial, protocolos comunitários, além de participações importantes em espaços de efetivação de políticas públicas na área da infância, adolescência, meio ambiente e povos e comunidades tradicionais.