No Dia do Índio, pesquisador alerta que pandemia entre povos indígenas é de extrema preocupação

Pesquisa reitera inclusão dos nativos no grupo de risco ao coronavírus como medida urgente. Foto: Alex Pazuello

19 de abril de 2020

09:04

Nícolas Marreco – Da Revista Cenarium

Neste Dia do Índio, a REVISTA CENARIUM teve acesso a um estudo de pesquisadores amazonenses publicado há poucos dias na revista Science, que aponta uma série de medidas urgentes de precaução à pandemia do Coronavírus. Entre elas, a inclusão de povos indígenas nos grupos de risco e o lockdown, que é o sistema de quarentena imediato dos estados, principalmente no Amazonas, uma vez que a pandemia entre esses povos é de extrema preocupação.

“É difícil prever uma data até que o lockdown (quarentena) tenha validade, porque a contaminação está muita rápida. Semana que vem já pode ser tarde demais”, avaliou o autor principal do artigo, Lucas Ferrante. Atualmente, ele é doutorando em Ecologia e mantém um grupo de estudos sobre povos tradicionais no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa).

O estudo usa como base protocolos técnicos sobre a pandemia principalmente da Organização Mundial de Saúde (OMS). Ferrante explica, sobre os indígenas, que historicamente as gripes foram armas letais provocando mortes em massa nas comunidades devido ao organismo dos nativos não ter participado da coevolução desse patógeno.

Assim, são mais suscetíveis a doenças como a Covid-19 que o resto da população. “Nos baseamos no histórico dos nativos americanos frente a surtos epidemiológicos. Principalmente na Amazônia Brasileira temos vários relatos de colonizadores usando gripe para dizimar índios. O livro Armas, Germes e Aço, do Jared Diamond, relata muito bem esse processo para causar o etnocídio”, argumentou.

Invasores de terra

Além desse fato, invasões às terras indígenas ganharam mais intensidade nas últimas semanas devido ao esvaziamento dos órgãos de controle e a discursos recentes do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). “É um momento delicado, porque tem incursões de missionários tentando contato com índios isolados, que podem levar o coronavírus”, citou Ferrante.

Principais dificuldades nas aldeias é a assistência insuficiente somado às incursões ilegais. Assim, o solidarismo são medidas que preenchem lacunas, como a produção de máscaras artesanais. Foto: Alex Pazuello/ Divulgação

O território do Vale do Javari, maior região do mundo de índios isolados, no Oeste do estado, com mais de 6 mil índios e 16 povos isolados, tem sofrido com a entrada de evangelistas norte-americanos, principalmente.

O discurso de Bolsonaro sobre o enfraquecimento do isolamento, Ferrante diz, é um estímulo. A entrada se dá ilegalmente pela Tríplice Fronteira, em que trafegam de monomotor até terra firme, driblando a fiscalização de aeroportos, por exemplo.

Grileiros, madeireiros, garimpeiros e outros atores da exploração ilegal também ganham mais liberdade nesse cenário, segundo a pesquisa. Com a demissão recente do diretor de proteção ambiental do Ibama, Olivaldi Azevedo, logo após uma operação contra invasores de terras indígenas, a “zona de impunidade”, como falou Ferrante, fica ainda mais nociva aos nativos.

“A ministra Damares (Mulher, Família e Direitos Humanos) e o ministro Moro (Justiça e Segurança Pública) falaram de medidas tardias aos povos que foram por água abaixo com a saída do diretor do Ibama. É absolutamente impossível pensar que o governo protege os povos se não combate a invasão. As medidas são da boca para fora, não funcionam, e estimulam mais invasores a agir”, contestou o cientista.

O ideal

Suprir as aldeias com medicamentos e itens básicos de saúde, estratégias para a remoção de indígenas que têm sintomas da Covid-19, o envio de ventiladores mecânicos aos interiores são algumas das ações que deveriam estar ocorrendo, conforme a pesquisa publicada. “A morte recente de um menino Yanomami de 16 anos reforça que os índios estão no grupo de risco”, observou Ferrante.

Além disso, a proibição de transportes via estradas e rios também é um meio de prevenir a saúde desses povos. A obra da rodovia federal BR-319 é um embargo ecológico principalmente por desrespeitar a consulta prévia aos povos, dando margem para a construção de ramais ilegais mata adentro. A saída dos médicos cubanos no Programa Mais Médicos, há mais de um ano, também ainda evidencia sequelas do não assistencialismo.

“Visitei há um mês, mais ou menos, uma comunidade em Manicoré (a quase 457 km de Manaus) e que estava sem médicos. Esse déficit agrava a situação porque como vai dar as recomendações, acompanhar os possíveis sintomáticos de quem estava fora da aldeia e retorna? Você não pode impedir os indígenas de voltar para casa”, disse, exemplificando.

Na pesquisa não há um levantamento exato de quantos povos padecem nesse contexto, embora Ferrante afirme que “podemos falar com segurança que praticamente todas estão desassistidas”. A medida mais eficaz no combate à pandemia, tanto para as populações tradicionais quanto para o meio urbano, defende o pesquisador, é reforçar ao máximo o isolamento e reforçar o monitoramento.

Cloroquina e isolamento ‘vertical’

A pesquisa ainda aborda sobre os fatos científicos que se tem notícia até agora sobre a cloroquina nos efeitos contra o coronavírus. Inclusive, usando o acervo da Science. Ferrante usa o fato de que por não ser um antirretroviral, não há sentido em usar a cloroquina e seus variantes no tratamento de Covid-19. “É uma droga para tratar parasitas, o plasmodium da Malária. Ela não tem esse princípio ativo”, orientou.

Fora o histórico científico de não ser usado contra vírus, a pesquisa destacou os malefícios observados quando a droga foi administrada em pacientes graves. Em doses altas, ela aumentou as incidências de lesões cardiopatas e falência renal. Em doses baixas, como recomendado no Brasil, mesmo assim, o pesquisador reprova o uso do químico.

“Uma vez que não existem evidências da eficácia, não faz sentido receitar um remédio, mesmo em doses baixas, que possa fazer mal”, continuou. As medidas que o presidente da República tem estimulado, como o chamado isolamento ‘vertical ou parcial’, também não são reconhecidas pela comunidade científica, Ferrante indicou.

Mesmo em doses baixas, pesquisa científica ratifica a suspensão da cloroquina como uso profilático à Covid-19. O reforço médico às comunidades tradicionais já foi liberado pela Funai, embora não tenha sido efetivado ainda na prática. Foto: Alex Pazuello

“Ele mudou o nome; colocamos que são anti-científicas. Não têm validade alguma. Em nenhum momento cientista ou instituição de saúde recomendou isso. São pessoas do círculo do presidente da República que as têm sugerido. Se você rescinde a quarentena agora, multiplica o número de contaminados, que é o achatamento da curva. Vão ter picos muito maiores do que se espera da doença, talvez até se antecipem, e o nosso sistema não vai conseguir atender todos”, completou o cientista.

Secretaria de Saúde Indígena

Os sete Distritos Sanitários de Saúde Indígena (DSEIs) colocados no Amazonas, vinculados à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), são os responsáveis pela assistência e traçar as estratégias da pandemia aos indígenas. O coordenador do DSEI Manaus, Mário Lacerda, afirmou que o distrito supervisiona aproximadamente 30 mil índios e que a saúde básica é o enfoque.

“Temos 19 municípios de abrangência, divididos em 253 aldeias, e força de trabalho de mais de 500 profissionais. Temos atuado em todos os polos. A atenção é a primária, e a casinha de saúde indígena serve de apoio para as demandas de alta e média complexidade. Estamos repassando as notas de prevenção da secretaria diariamente”, listou Lacerda.

Subcomitês de comunicação foram montados com conselheiros recém-capacitados para atender as comunidades sobre o conhecimento da pandemia, segundo ele. A aldeia de Terra Preta, nas proximidades de Manaus, registrou nos últimos dias três pessoas com sintomas de Covid-19, com um testando positivo. “O nosso agente chegou lá no dia primeiro de abril, ficou sete dias e usou 16 testes rápidos. 13 testaram positivo, um veio a Manaus para tratamento e os outros estão em isolamento”, detalhou o coordenador.

Conforme ele, em todas as aldeias do DSEI, ao menos um morador é agente de saúde. “A Sesai é a mais presente no Amazonas. Em cada aldeia tem um agente de saúde ou que passa mensalmente para aplicar as diretrizes sanitárias do nosso programa. Sobre as invasões de terra, deve haver algum ponto de Altazes (a quase 107 km de Manaus) que tenha esse problema. Normalmente quem atua é a Funai e o MPF. Mas só entra quem eles deixam”, declarou.

Uma preocupação é a lacuna de profissionais de saúde. Há alguns dias, a Sesai dispôs de verba para a contratação de um médico, dois enfermeiros e quatro técnicos de saúde para cada DSEI, pelo o que explicou Lacerda. A efetivação desses agentes deve acontecer nos próximos dias.

O outro lado

O líder indígena Yura Ní-Nawavo, da etnia Marubo, é natural do Vale do Javari e mora em Manaus enquanto finda a graduação em Direito. Em contato com os membros da aldeia ele ressaltou que a maior ajuda “são os coordenadores com espírito republicano, que pensam nos próximos”, frisando a pontualidade com o que o governo federal tem lidado a saúde indígena.

“No DSEI do Alto Solimões tem um trabalho diferenciado, até pelo coordenador ser indígena. O que o governo não está fazendo é o que vemos nos noticiários. A Funai sucateada não tem condições de trabalhar. Foi liberado R$ 11 milhões pro combate ao coronavírus e não vimos um centavo até agora. É uma falha gravíssima”, lamentou.

Quando a pandemia iniciou, os indígenas que estavam nas cidades retornou para a aldeia, contudo a parcela mais humilde, dos estudantes, por exemplo, não conseguiu condições de fazer a viagem. Uma faixa de 120 pessoas, Yura diz, ficou na sede do município ao invés da comunidade São Sebastião, lar original do índio maruba. Outro obstáculo na assistência aos índios é a proximidade, principalmente com o idioma nativo, com que os agentes têm aos índios.

“Nós temos a nossa enfermeira da comunidade, formada pelo movimento indígena. Ela vem fazendo o que a OMS recomenda, e fazer essa simbiose de casa em casa, pessoa por pessoa, é que é o certo. Ela fala a nossa língua, e isso facilita muito a comunicação. Esse é o ponto-chave para capacitar profissionais da própria etnia, porque usar intérprete e tradutor são mundos distintos”, esclareceu.

Isso reflete também no reconhecimento que os nativos dão às informações repassadas pelos agentes. Mesmo com a presença mínima deles, ainda é possível fazer os atendimentos devido ao planejamento da entrada de pessoas nas aldeias, o que é fragilizado com “missionários que passam por cima das leis brasileiras, adentrando a força”.

Yura, que também é assessor especial da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, finaliza afirmando que a orientação maior entre os povos é ignorar as falas do presidente Bolsonaro enquanto às recomendações de saúde. “Ele está louco. Pedimos que os povos continuem seguindo as instituições de saúde e o isolamento”, concluiu.