O redemoinho da Esperança: a liberdade como vórtice na poesia de Thiago de Mello

Nascido em Barreirinha, Thiago de Mello conquistou reconhecimento nacional e internacional, tornando-se um dos mais expressivos poetas contemporâneos do País (André (Argolo/Divulgação)

14 de março de 2021

14:03

Terceira homenagem da série ‘Thiago de Mello 95 anos’

Por Thiago Roney

O contista Thiago Roney é o terceiro escritor a prestar homenagem ao poeta Thiago de Mello no especial da Revista Cenarium (Arquivo Pessoal)

No pequeno ensaio “Vórtices”, Giorgio Agamben[1] detém-se sobre a dinâmica da espiral de um redemoinho para formar o vórtice como movimento arquetípico da água. Retoma a imagem a partir da analogia construída no conceito de origem de Walter Benjamin – o qual refere-se ao movimento emergente de um material do fluxo do devir histórico compondo uma pré e pós-história. O vórtice constitui a singularidade de uma forma que ao mesmo tempo faz parte da água, de certo modo, e se separou do seu fluxo. E, nesse movimento, não cessa de arrastar para seu rodopio, numa força de aspiração infinita, vindo do centro, os objetos ao seu redor. De maneira similar, “a origem é contemporânea ao devir dos fenômenos, dos quais extrai sua matéria e nos quais, todavia, permanece, de algum modo, autônoma e parada”. Um exemplo paradigmático da origem acontece na linguagem, principalmente na poesia. Nela, o ato de nomear as coisas e os fenômenos, de instaurar o puro nome, produz um redemoinho de tensão semântica e comunicacional em que o signo linguístico afunda em si mesmo num turbilhão para reaparecer como um novo nome, um vórtice.

Nesses 95 anos de vida do poeta Thiago de Mello, completados agora em 2021, a melhor homenagem que podemos fazê-lo é reler sua obra. Ler ou reler uma obra é sempre torná-la viva pela luz do presente histórico do leitor, uma vez que o agora sempre é visado por algum passado. Nosso presente traz um ímpeto novo para a força poética de obras como Faz escuro, mas eu canto, de 1965, e A canção do amor armado, de 1966. Nessa perspectiva, a poesia de Thiago de Mello, pensando sua trajetória em forma de uma espiral, a qual o nosso presente histórico revela as forças do turbilhão da origem, no sentido referido acima, é um redemoinho da palavra Esperança, do qual o vórtice é a palavra Liberdade. Assim, a leitura dos poemas de Thiago de Mello hoje coloca no centro da espiral esses dois livros supracitados como eixos representativos de maior potência poética de sua obra, sobretudo os poemas “Os estatutos do homem, “Madrugada camponesa”, do primeiro livro[2], e o “Canção do amor armado”, do segundo[3].

Depois do golpe civil-militar de 1964, sob o impacto do Ato Institucional n.1 e da tortura como método de interrogatório, Thiago de Mello se vê impelido a escrever poemas como arma contra o arbítrio ao núcleo humano. Cria, então, o seu poema mais impactante e conhecido: “Os estatutos do homem (ato institucional permanente)”. Com uma estrutura jurídica de organização por artigos e por um parágrafo único, o poema traz em seu bojo um diálogo com a Declaração universal dos direitos do homem, de 1948, mas apenas no nível da superfície, pois a matéria poética que a reveste, por ser poesia, por definição, deforma qualquer lei. Aqui se localiza o núcleo da força poética do poema: o humano deve prescindir de qualquer lei para se instituir como uma espécie de lei imanente, por isso, o subtítulo “ato institucional permanente”. Estamos diante, portanto, de um poema-lei antilei.

O que é o humano? Para encontrar rastros de axiomas gerais, Thiago de Mello coloca no turbilhão do poema diversas palavras, enquanto signos linguísticos, para entrar na espiral de tensão semântica em relação temporal e atemporal com a realidade social. As primeiras palavras do artigo de abertura não poderiam ser outras que vida e verdade:

Artigo I

Fica decretado que agora vale a verdade.

agora vale a vida,

e de mãos dadas,

trabalharemos todos pela vida verdadeira

Em seguida, nos demais artigos, de maneira expressa, metafórica ou alegórica, Thiago insere no turbilhão poético outros signos linguísticos, tais como felicidade, alegria, confiança, justiça, claridade, alma, povo, amor, ternura, trabalho, belo, procurando compor o arcabouço de princípios do humano. Com isso, na espiral do sentido poético, cada palavra procura se aproximar ao momento primevo de nomeação, na perspectiva que, para dizer junto com Agamben, “os nomes (…) são vórtices no devir histórico das línguas, redemoinhos em que a tensão semântica e comunicativa da linguagem turbilhona em si mesma até ficar igual a zero. No nome, já não dizemos – ou ainda não dizemos – nada, chamamos apenas”.

Embora cada uma dessas palavras girem ao redor do nome e atinjam imagens alegóricas potentes, duas palavras, no entanto, participam do poema com maior força. Primeiro, a esperança, que aparece expressamente no final do Artigo III: “e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, / abertas para o verde onde cresce a esperança”, mas sua ideia atravessa em redemoinho como um fantasma todo o poema tentando fazer deste seu próprio corpo. Segundo, a liberdade. Palavra-núcleo do poema-lei antilei da pessoa humana. Sem dúvida, o signo linguístico liberdade é o vórtice principal do poema, numa trajetória insurreta e abissal por sua origem no momento de nomeação, como uma forma de tangenciar a origem do próprio humano. Assim, atravessando sua pré e pós-história, a liberdade suga e é sugada em espiral ao puro nome, ao estado imanente de ser inscrita e dita.

No processo da língua, de acordo com Agamben, “o nome é um vórtice que perfura e interrompe o fluxo semântico da linguagem, e não simplesmente para aboli-lo. No vórtice da nominação, o signo linguístico, volteando e afundando em si mesmo, intensifica-se e exaspera-se ao extremo, para depois se deixar sugar no ponto de pressão infinita, no qual desaparece como signo para reaparecer do outro lado como puro nome. E o poeta é aquele que imerge nesse vórtice em que tudo para ele se torna de novo nome. Ele precisa retomar, uma por uma, as palavras significantes do fluxo do discurso e jogá-las no turbilhão, para reencontrá-las no vulgar ilustre do poema como nomes. Estes últimos são algo que alcançamos – se é que alcançamos – só no final da descida ao vórtice de origem”.

O poema, nesse sentido, ao fazer a palavra liberdade rodopiar, recolhe todas as ruínas de sentidos, depois desata e esvazia as semânticas corroídas. Nessa espiral, a liberdade envolvesse em si mesma, enquanto signo, tendendo para um vazio semântico primordial, procurando o nome puro que possa, enfim, renomear o que se chama liberdade, o princípio basilar da pessoa humana. Em outras palavras, como se tivesse sido torturada e morta, a palavra liberdade deve renascer na imanência mesmo do viver, por isso Thiago de Mello a inscreve expressamente no artigo final dos estatutos, corporificando o fantasma que vinha atravessando, junto com a esperança, todo o turbilhão do poema:

Artigo Final.

Fica proibido o uso da palavra liberdade,

a qual será suprimida dos dicionários

e do pântano enganoso das bocas.

A partir deste instante

a liberdade será algo vivo e transparente

como um fogo ou um rio,

e a sua morada será sempre

o coração do homem.

Para completar essa experiência de sentido das palavras, Thiago de Mello nos traz na mesma obra mais um grande poema, “Madrugada camponesa”,o qual tem o verso título do livro: “Faz escuro, mas eu canto”. Com estrutura, temática, tom e ritmo distintos, o poema, contudo, continua a fazer o turbilhão da ideia de esperança girar. Inicia com a imagem metafórica da desesperança de um tempo sem colheita, sem sol, sem luz, que faz referência semântica ao trabalho no campo, mas na tensão de sentidos do poema e do livro, verifica-se a relação com o autoritarismo da ditadura militar brasileira como o momento de escuridão, o qual, no entanto, é ainda possível fazer ou acontecer algo: 

Madrugada camponesa,

faz escuro ainda no chão,

mas é preciso plantar.

A noite já foi mais noite,

a manhã já vai chegar.

Não vale mais a canção

feita de medo e arremedo

para enganar solidão.

A ideia de liberdade, subsumida e implícita, também é um dos vórtices que atravessa o corpo do poema. É ela que abre a possibilidade mesma da esperança, a possibilidade de plantar, de cantar e do amanhã chegar. Assim, temos, novamente, a espiral da liberdade no centro do poema a fazer rodopiar o redemoinho da esperança, este mais visível e forte, como aponta os versos finais, inesquecíveis e imprescindíveis:

Colho um sol que arde no chão,

lavro a luz dentro da cana,

minha alma no seu pendão.

Madrugada camponesa.

Faz escuro (já nem tanto),

vale a pena trabalhar.

Faz escuro mas eu canto

porque a manhã vai chegar.

(Faz escuro, mas eu canto)

Já no poema “A canção do amor armado”, a temática é claramente a ditadura brasileira, como mostram, por exemplo, os seguintes versos finais da abertura: “Foi hoje e foi aqui, no chão da pátria, / onde o voto, secreto como o beijo / no começo do amor, e universal / como o pássaro voando – sempre o voto / era um direito e era um dever sagrado”. Embora se estabeleça certo sentido na superfície, não há aqui um panfleto puro e simples; ao revés, estamos diante de um poema em plena irrupção, numa voragem de sentidos. Novamente, esse novo turbilhão tem como força motora a esperança e como vórtice de fundo a liberdade. Nos versos seguintes, o poema diz sobre a desintegração do voto, quando deixou de ser sagrado, de ser direito, de ser tudo, de ser encontro, de ser caminho, de ser dever, de ser cívico, de ser apaixonado, de ser belo, de ser arma, de ser povo, deixou, enfim, de ser voto. Sentimos, na experiência de leitura do poema, que o voto não é simplesmente o voto, aqui rodopia na palavra voto a ideia mesma de liberdade, no caso, uma ideia pela própria ausência imanente.

A seguinte pergunta surge, em seguida, no poema: “Deixou de ser do povo e não sucede, e não sucede nada, porém nada?”. Ao redor do vórtice da liberdade, o redemoinho da esperança transparece: “Ninguém sabe nunca o tempo / que o povo tem de cantar: / Mas canta mesmo é no fim”. Mesmo que aparentemente não suceda nada, no seio do que se possa chama de liberdade da pessoa humana e, em termos coletivos, no seio do povo, que é uma forma de dizer também a liberdade, há um tempo de cantar sem se saber quando virá, há algo que se pode denominar de esperança. Até porque “O povo não é por isso / que vai deixar de cantar, / nem vai deixar de ser povo. / Pode ter perdido o voto, / que era sua arma e poder. / Mas não perdeu seu dever / nem seu direito de povo, / que é o de ter sempre sua arma, / sempre ao alcance da mão”. Então, nas últimas estrofes, o poema finaliza com o movimento em espiral, pleno de força, do vórtice da liberdade no redemoinho da esperança, combinação amalgamada na expressão “amor armado”:

O povo sabe, eu não sei.
Sei somente que é um dever,
somente sei que é um direito.
Agora sim que é sagrado:

cada qual tenha sua arma

para quando a vez chegar

de defender, mais que a vida,

a canção dentro da vida,

para defender a chama

de liberdade acendida

no fundo do coração.

Cada qual que tenha a sua,

qualquer arma, nem que seja

algo assim leve e inocente

como este poema em que canta

voz de povo — um simples canto

de amor.

Mas de amor armado.

Que é o mesmo amor. Só que agora

que não tem voto, amor canta

no tom que seja preciso

sempre que for na defesa

do seu direito de amar.

O povo, não é por isso

que vai deixar de cantar.

 Mas, afinal, o que é a liberdade e a esperança e, por consequente, o núcleo do humano, podemos nos perguntar. Embora explore caminhos, rastros e ruínas de sentidos, os poemas desintegra-os e dissolve-os em imagens metafóricas e alegóricas. Deixa-nos com o mistério do puro nome. Se a poesia tem alguma função, uma delas é precisamente essa. Como noz diz Jean-Luc Nancy[4], em “Fazer, a poesia”, “o sentido de ‘poesia’ é um sentido sempre por fazer”. Estamos diante de uma experiência do sentido, ainda que numa certa negatividade, “no sentido em que nega, no acesso ao sentido, aquilo que determinaria esse acesso como uma passagem, uma via ou um caminho, e o afirma como uma presença, uma invasão. Mais do que um acesso ao sentido, é um acesso de sentido”.

Nossa melhor homenagem ao poeta Thiago de Mello, portanto, é reler sua obra. Se tínhamos o contexto da ditadura militar na época de produção dos livros, hoje vivemos acontecimentos que nos colocam ostensivamente diante do labirinto que pode ser as palavras esperança e liberdade, defrontando-nos com o enigma do humano. Assim, reler os poemas de Thiago de Mello, mais que um grande tributo a sua presença viva entre nós, produz novamente o redemoinho da esperança e o vórtice da liberdade trazendo seus puros nomes para que possamos ter um acesso de sentido, um acesso mínimo do humano, no recôndito impossível onde se inscreve sua lei antilei que ninguém consegue ler.

O autor

Thiago Roney é autor de dois livros de contos, “O estouro da artéria de um cavalo húngaro” e “A merda do mundo” (em coautoria com Arcângelo Ferreira), e o conto em e-book “A panela velha do mundo”, na coleção Formas Breves da editora e-galáxia, editada e coordenada pelo escritor Carlos Henrique Schroeder. Atualmente, é doutorando em Literatura pela UnB.


[1] Todas as citações que se seguem foram tiradas do ensaio Vórtices In: AGAMBEN, Giorgio. O fogo e o relato: ensaios sobre criação, escrita, arte e livros. Tradução Andrea Santurbano e Patricia Pertele. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2018. P. 83-88.

[2] Todas as citações desse livro foram tiradas da seguinte edição: MELLO, Thiago de. Faz escuro, mas eu canto: porque a manhã vai chegar. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. O poema Os estatutos do homem, p. 19-22. O poema Madrugada camponesa, p. 34-35.

[3] E as citações desse livro: MELLO, Thiago de. A canção do amor armado. 2 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. O poema Canção do amor armado, p. 17-19.

[4] Citações do Fazer, a poesia In: NANCY, Jean-Luc. Resistência da Poesia. Tradução Bruno Duarte. Lisboa: Edições Vendaval, 2005. p. 9-20.