02 de novembro de 2023
15:11
Yana Lima – Da Agência Amazônia
MANAUS (AM) – Os dias que antecederam o Dia de Finados foram de muito trabalho para reformar e deixar o terreiro da Associação de Desenvolvimento Sócio-Cultural Toy Badé, no bairro Cidade Nova, Zona Norte de Manaus, pronto para a cerimônia do Kútítɔ́nú (Culto aos Ancestrais). O local é um dos templos de Candomblé em Manaus, capital do Amazonas, e o ritual é um exemplo de como a véspera e o Dia de Finados são importantes para nações de matriz africana, em especial o Candomblé e a Umbanda, pois representam um momento de reencontro, honra e louvor aos ancestrais.
Iluminado apenas pela luz das velas, o ritual iniciou na noite desta quarta-feira, 1º, com a evocação dos ancestrais. O respeito, a reverência e o silêncio são mantidos durante toda a noite. Essa atitude de recato segue até as 18h desta quinta-feira, 2. Com o nascer do Dia de Finados, as oferendas já estão entregues e resguardadas, aguardando o momento em que serão retiradas e devolvidas à natureza, onde se transformarão em compostagem. O ciclo da vida e a sustentabilidade da natureza também fazem parte da celebração dos ancestrais na cultura de matriz africana.
No contexto do Candomblé, embora o Dia de Finados seja um período significativo para essa religião, a prática de louvar e honrar os ancestrais faz parte do cotidiano ao longo de todo o ano. A conexão com aqueles que partiram é constantemente cultivada, demonstrando a importância central que essas tradições religiosas dão aos laços com o passado e à reverência aos antepassados.
Passagem e encontro com os ancestrais
O coordenador-geral da Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades de Tradicionais de Matriz Africana (Aratrama), Pai Alberto Jorge, explica que, nas tradições religiosas de matriz africana, a morte é vista como uma passagem para um plano superior, um encontro com os ancestrais, e todos aqueles que falecem se integram à força da casa e da família.
“Nós vemos a morte de uma maneira diferenciada. Para nós, ela é a nossa passagem para outro plano, para o encontro com os nossos ancestrais. Todos aqueles que morrem se integram à força da casa, à força da família. O ancestral, para nós, ele é tudo, ele é a raiz”, explica.
Ritual
A celebração do Dia de Finados ocorre anualmente na noite de 1º de novembro, começando com a reza chamada “zandro”, que significa “vigília”, ritual que acontece um dia antes. O culto inicia ao anoitecer e pode acontecer até o amanhecer. Ele envolve a purificação espiritual, oferendas e um jantar à base de peixe, seguido pela homenagem aos antepassados. Uma parte do jantar é reservada para que os ancestrais se juntem aos vivos, e um prato especial é colocado ritualisticamente para eles.
O babalorixá brasiliense Ronald Aguiar explica que, nas religiões afro, existe o culto chamado “ipadê“, que é realizado antes de um toque de Candomblé. Esse culto tem o propósito de relembrar e honrar os antepassados, refletindo sobre suas ações durante a vida e entoando cânticos em homenagem à memória deles.
Nesse contexto, não há um dia específico reservado para lembrar aqueles que já partiram, pois sempre que ocorre um toque de Candomblé, os antepassados são lembrados e reverenciados. Para o babalorixá, a morte é uma passagem para o orun (céu), um local de descanso onde os orixás residem, aguardando o retorno ao ayê (terra). “O povo afro religioso respeita o dia 2 de novembro para outras pessoas que não são adeptas”, explica.
Enterro, cemitério e intolerância religiosa
Segundo o babalorixá, devido à intolerância, muitos religiosos de matriz africana preferem evitar visitar cemitérios no Dia de Finados, optando por fazê-lo em datas diferentes. Isso é feito para evitar conflitos e respeitar o descanso daqueles cujos corpos repousam no cemitério, demonstrando o cuidado com as tradições e o respeito ao próximo.
“Geralmente, religiosos afro evitam a visita ao cemitério neste dia por causa da intolerância religiosa, até mesmo dentro do berço familiar. Preferem ir visitar fora da data para ficarem mais à vontade e evitar atritos, por respeitar o descanso daqueles onde a matéria (corpo) está”, detalha.
Quanto aos cemitérios, segundo o sacerdote Pai Jorge, é permitida e aconselhável a visita aos túmulos, mas este não é o ponto central dos cultos nesta religião. Para ele, o ideal seria que os membros de cada comunidade fossem enterrados em seus terreiros.
“Mas aqui no Brasil, isso esbarra em normas sanitárias. No meu caso, como eu sou o fundador da casa, a primeira pessoa a ser enterrada teria que ser eu, para depois serem os demais. Mas tudo isso é um debate, são discussões teológicas que nós estamos tendo à luz da tradição”, conclui.
Resgate
A autoridade tradicional Bokonon Fa Asinan Dotè Gbadessi Lossossi (cujo nome civil é Jorge Henrique) viajou até o Benin, país localizado no Oeste da África, para coletar informações diretamente das fontes originais sobre os rituais e, assim, contribuir para promover um resgate histórico nos cultos realizados no Brasil.
O Candomblé é uma palavra bantu que significa “reunião”. Segundo ele, a cerimônia fúnebre é a única em que se faz homenagens aos três tipos de ancestralidade (Fon, Iorubá e os Bantu, referência a regiões distintas da África). No entanto, é importante destacar que elas têm práticas, divindades, culturas alimentares e tradições distintas.
Jorge Henrique é iniciado no culto ao vodun (divindades do povo Fon) e passou por duas iniciações no Benin. Ele pertence à Unidade Tradicional Territorial Hunkpame Gbade Korodje, de São Bernardo do Campo, em São Paulo, e tem desempenhado um papel fundamental na orientação desse processo de ressignificação em Manaus.
Bokonon destaca que o resgate busca combater a deturpação desses ritos e reestabelecer a autenticidade das tradições religiosas de matriz africana, assegurando que elas permaneçam fiéis ao que os ancestrais praticavam na África. “Não desvalorizando, os ancestrais foram sequestrados da África e trazidos à força para esta terra. Devemos tentar unificar, respeitando todos os lados”, destaca.
Os cultos ao vodun tem suas especificidades. No Benin, os chefes de família são sepultados dentro de suas próprias casas, e esses locais são utilizados para prestar homenagens aos ancestrais. Jorge explica que é comum oferecer aos ancestrais aquilo que eles gostavam de comer e beber.
Ele enfatiza a crença de que os iniciados não morrem, mas retornam à sua origem, ressaltando a continuidade espiritual e a conexão com os ancestrais nas tradições de matriz africana, tanto no Brasil quanto na África. “Para nós da tradição de matriz africana ou culto endógeno do Benin e o culto tradicional Iorubá, os iniciados não morrem, apenas retornam para sua origem”, conclui.
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Edição: Marcela Leiros
Revisão: Gustavo Gilona