Profissionais enfrentam desafios na prevenção e combate ao suicídio entre indígenas

Índio Guarani Caiová fixa cruz em cemitério da tribo. (Ueslei Marcelino/Reuters)

09 de outubro de 2021

20:10

Cassandra Castro – Da Cenarium

BRASÍLIA – O mês de setembro, que é dedicado aos cuidados de saúde mental, encerrou, mas o drama vivido por quem tenta cometer suicídio e familiares que perderam entes queridos dessa forma tão brutal é um desafio diário também entre os povos indígenas de Norte a Sul do Brasil.

Eunice Kerexu Yxapyry é líder indígena guarani da Terra Indígena Morro dos Cavalos, em Santa Catarina, e coordenadora-executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Também educadora e gestora ambiental, Eunice conhece de perto a realidade do povo Guarani que vive na região de Guaíra, no Paraná, e realiza um trabalho de acompanhamento de familiares de jovens que cometeram suicídio. Em sua maioria, moças que sofriam de depressão. Só este ano foram registradas 12 ocorrências, sendo 10 de garotas e duas de garotos.

Eunice relata que foi chamada para ajudar lideranças locais que têm feito o que podem para tirar os jovens dessa situação. “O povo Guarani lá de Guaíra é cercado por donos de propriedades, cidades e pessoas que não entendem a cultura indígena, o que acaba gerando situações de preconceito e perseguição. Também tem o agravante de ser uma região de agronegócio, o que acarreta sempre uma pressão muito grande para o povo guarani”, explica.

Contrastes de culturas

A coordenadora-executiva da APIB conta que faltam políticas públicas para os guarani da região e, principalmente, acesso à educação, que é um dos fatores mais graves para desencadear casos de problemas psicológicos que terminam em ocorrências de suicídio.  

Sem escolas nas aldeias, as crianças são obrigadas a estudar em escolas tradicionais e precisam se adequar aos padrões do “homem branco” como o uso de roupas, calçados, bolsas, e até mesmo a formas de se expressar. Esta pressão se intensifica na adolescência. Eunice relata à CENARIUM que esses jovens reclamam junto aos pais, lideranças e familiares, mas nem sempre recebem apoio da própria comunidade. “Incompreendidos, esses garotos e garotas acabam mergulhando no mundo da prostituição, do alcoolismo e passam a ser rejeitados em todos os lugares”.

A violência sexual também é um dos fatores que levam, principalmente as adolescentes, a atentarem contra a própria vida. “São jovens que foram violentadas e quando vêm para a aldeia, acabam sendo abusadas sexualmente pelos próprios indígenas. É muito triste, doloroso. Muitas vezes, os familiares não conseguem dar esse suporte, esse apoio às vítimas”, conta Eunice.

A educadora ainda destaca a questão da demarcação de terras indígenas. “A demarcação das terras indígenas é uma questão crucial para que se consiga trazer, para dentro da comunidade, a política pública da educação escolar indígena nas aldeias”, pontua também.

A cultura dos povos indígenas sofre com desrespeito e preconceito (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Em Roraima, problema agravado com a chegada de garimpeiros

A psicóloga Iterniza Pereira André Macuxi atua desde o ano passado no Conselho Indígena de Roraima (CIR). Ela é indígena da comunidade Maturuca, da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. A especialista escolheu justamente a problemática do suicídio entre indígenas como tema para o seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) e, ainda na faculdade, já enfrentou o obstáculo de não existirem artigos, livros e informações concretas sobre o assunto.

Iterniza explica que antes eram os fatores culturais que afetavam a saúde mental das famílias. “Na cultura Macuxi, por exemplo, se uma pessoa perde um ente querido, ela precisa passar um período de três a seis meses em casa, sem realizar os seus afazeres de costume, tirando este tempo para descansar e honrar o parente morto. Caso ela desrespeite esta tradição, espíritos malignos se apoderam da pessoa, que pode apresentar problemas espirituais e psicológicos”, detalhou a psicóloga.

Com a chegada dos garimpeiros, os problemas psicológicos e emocionais se agravaram. Os casos de violência sexual, prostituição, uso e abuso de álcool e drogas trazidos pelos invasores desestruturaram muitas famílias que passaram a conviver com o  medo, a ansiedade e a insegurança.

Marcas do garimpo na Terra Indígena (TI) Yanomami (Christian Braga/Greenpeace)

Ações para ajudar

O CIR contratou pela primeira vez um psicólogo para trabalhar com a conscientização e a prevenção a problemas além do suicídio. São casos como gravidez na adolescência, violência doméstica e estupro. A psicóloga Iterniza Pereira André Macuxi relata que, com a pandemia da Covid-19, não foi possível realizar atividades coletivas como oficinas, seminários e palestras.

“Eu atuo especificamente com as comunidades indígenas de Roraima, como os Macuxi, Wapichana, Yanomami. Faço atendimentos presenciais e online; viajo para as comunidades para oferecer assistência psicológica”, explica Iterniza.

Na opinião da psicóloga, faltam políticas públicas com um olhar mais direcionado para este drama e um auxílio para as próprias populações que precisam lidar com esta questão do suicídio, visto em muitas sociedades como um tabu.

Mesmo com a existência dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs) que trabalham na assistência de saúde para os povos originários, a especialista avalia que também falta uma maior capacitação dos profissionais para realizar um trabalho com ética. “Trabalhar com a comunidade indígena requer paciência e respeito, são muitas pessoas que necessitam de atendimento”, finaliza.

Ações do Ministério da Saúde

De acordo com informações preliminares do Ministério da Saúde, por meio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), de 2020 até setembro de 2021, indígenas da região Norte, que compreende os DSEI do Alto Rio Negro, Alto Solimões, Leste de Roraima e Yanomami, receberam mais de 34 mil ações de saúde mental. Entre essas ações estão os atendimentos individuais e familiares; visitas domiciliares; grupos de saúde mental e bem viver e ações participativas.

Desde 2020, a Sesai ampliou o número de profissionais de saúde mental que desenvolvem ações nas aldeias indígenas e qualificou mais de 583 profissionais das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI). Atualmente, são quase 100 profissionais de psicologia que realizam apoio e assistência direta aos indígenas e às equipes de saúde no manejo de transtornos mentais, problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas, e ações de prevenção ao suicídio.