São Paulo Negra: caminhada resgata memória negligenciada pela história oficial

A Caminhada São Paulo Negra é iniciada no Bairro da Liberdade (Felipe Benicio / Guia Negro)

26 de novembro de 2023

15:11

Alessandra Karla Leite – Especial para a Agência Amazônia

SÃO PAULO – Morada da maior população negra do País em termos numéricos, com mais de 4 milhões de habitantes que se consideram negros ou pardos, São Paulo mantém sob o véu da invisibilidade muitos lugares e personagens negros que ajudaram a construir a história da cidade. Escondidos pelo racismo estrutural e relegados ao esquecimento por grande parte da sociedade, muitas dessas figuras notáveis são resgatadas pela Caminhada São Paulo Negra, uma iniciativa do Guia Negro, plataforma de afroturismo que realiza experiências turísticas em diversas cidades brasileiras.

A Caminhada São Paulo Negra é iniciada no Bairro da Liberdade, reduto negro nos séculos 18 e 19, e termina no Largo Paissandu. Personagens negros importantes da história são destacados, como é o caso da escritora Carolina Maria de Jesus, do poeta e patrono da abolição Luiz Gama e do arquiteto Joaquim Pinto de Oliveira, o Tebas.

Também são incluídas nas narrativas da Caminhada São Paulo Negra a migração africana atual, a música, os movimentos e empreendimentos negros modernos.

Durante o percurso, que tem duração de três horas e meia, os participantes percorrem as nuances das histórias negras que estão por toda a cidade, na região central e em todos os bairros.

Caminhada desvenda histórias, lugares e personagens de SP (Foto: Divulgação / Guia Negro)
História e resistência

De acordo com o jornalista, escritor e militante do movimento negro, Oswaldo Faustino, até o século 19, a província de São Paulo tinha um grande número de escravizados, explorados nas lavouras de café e cana de açúcar, que eram pessoas do interior. “Viviam em suas fazendas produzindo, comercializando e exportando suas produções. Em meados do século 19, as famílias dos barões se transferiram para a capital e trouxeram seus serviçais.”

Caminhada inicia no Bairro da Liberdade (Foto: Alessandra Leite / Revista Cenarium)

Segundo Faustino, que conduziu a Caminhada São Paulo Negra na tarde desse sábado, 25, foi assim que a cidade passou da configuração de um triângulo – cujas vértices eram as igrejas de São Francisco, São Bento e Nossa Senhora do Carmo – para se estender e criar os primeiros loteamentos “nobres”. “Locais como Campos Elíseos, Higienópolis e Avenida Paulista são alguns desses exemplos. Já os negros e negras ocupavam as periferias, como os bairros da Liberdade, Barra Funda, Bixiga e imediações”, explicou.

Caminhada é guiada pelo jornalista, escritor e militante do movimento negro Oswaldo Faustino (Foto: Alessandra Leite / Revista Cenarium)


Mesmo antes da abolição da escravidão, descendentes de africanos ocupavam as periferias próximas do triângulo, onde garantiam sua sobrevivência econômica, mas foram afastados, cada vez mais, para a outra margem de rios como o Tietê, o Tamanduateí e o Pinheiros, formando bairros como Casa Verde, do Limão, Brasilândia, Brás e, mais tarde, em regiões mais distantes das Zonas Leste e Sul da capital.

Porém, histórias e personagens como Luiz Gonzaga Pinto da Gama, o Luiz Gama, Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, Joaquim Pinto de Oliveira, ou Tebas, e mais tarde, Solano Trindade, Carolina Maria de Jesus, Deolinda Madre, a Madrinha Eunice, entre muitas e muitos outros deixaram belas histórias impressas nesta cidade”, ressalta.

Faustino é autor do livro “À luz de Luiz: por uma Terra sem Reis e sem Escravos” e tantos outros abordando as relações étnico-raciais.

Reparação histórica

Cenário de massacres, enforcamentos e tantos outros crimes contra os negros escravizados, a famosa praça Japão-Liberdade, na capital paulista, teve seu nome alterado em meados do ano de 2023 para Liberdade África-Japão, em uma espécie de reparação histórica. O bairro da Liberdade é conhecido pela comercialização de produtos orientais, onde circulam diariamente milhares de descendentes japoneses. Porém, para além da história do povo japonês, a região também abriga grande parte da história de negros do país.

Escultura homenageia a sambista Deolinda Madre, mais conhecida como Madrinha Eunice, na Praça Liberdade África-Japão (Foto: Alessandra Leite / Revista Cenarium)

A decisão da mudança do nome foi muito comemorada pelos organizadores do tour “Caminhada São Paulo Negra”, por se tratar de um reconhecimento oficial da história negra no local, marcado pela dor da escravidão.

Um dos personagens mais lembrados durante o percurso é Francisco José Chagas, ou Chaguinhas, lembrado como alguém que deixou sua história impressa na cidade de São Paulo.

O militar, no período do Império, enfrentou por três vezes a forca em uma mesma manhã, mas acabou sendo assassinado a pauladas. Chaguinhas defendia equidade salarial e pagamentos em dia. Ele reivindicava salários atrasados há cinco anos, aumento do soldo e igualdade no tratamento entre soldados brasileiros e portugueses e, por conta disso, comandou o ataque a uma embarcação de bandeira portuguesa.

No ano de 1821, ocorreu a execução de Chaguinhas. A corda foi colocada no patíbulo de enforcamento e no pescoço de Francisco José Chagas, mas ela arrebentou e o réu caiu no chão. O povo que assistia gritou a palavra “Liberdade”, cujo fato deu origem ao nome do bairro.


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Grafite ao longo do percurso relembra Chaguinhas, condenado à morte por ter liderado uma revolta por aumento de salários (Foto: Alessandra Leite / Revista Cenarium)
Percurso São Paulo Negra

Igreja Santa Cruz da Alma dos Enforcados – Localizada em frente ao antigo Largo da Forca, morro onde Francisco José das Chagas, o Chaguinhas, cabo que se rebelou contra o não-recebimento do salário, foi morto.

Zumbi dos Palmares – Liderou o Quilombo dos Palmares (AL), onde cerca de 20 mil pessoas viveram. Era neto de Aqualtune, princesa trazida de Angola escravizada, que se libertou e ajudou a fundar o quilombo. Na data da morte de Zumbi, em 1695, 20 de novembro, é comemorado o Dia da Consciência Negra.

Bixiga – Bairro localizado onde ficava o Quilombo da Saracura, que abriga a escola de samba Vai, Vai, a Casa do Mestre Ananias, com forte migração nordestina, muitos sambas e teatros.

Joaquim Pinto de Oliveira – Conhecido como Tebas, arquiteto negro do século 18, que conquistou a liberdade com o seu trabalho. Com técnica de talhar em pedras, foi responsável por importantes obras, como fachadas de igrejas e um chafariz, na São Paulo colonial.

Largo do Piques – De 1814, um dos monumentos mais antigos da cidade. Também abriga um chafariz dedicado à “memória do zelo do bem público”. Lavadeiras usavam a região. Também era usado como mercado de escravizados.

Carolina Maria de Jesus – Escritora conhecida por “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada”, publicado em 1960. O livro foi traduzido para mais de 14 Línguas. Escreveu até o fim da vida, quando teve que voltar a catar papel para sobreviver.

Galeria do Reggae – Com nome oficial de Galeria Presidente, é reduto da cultura afro desde os anos 60. Atualmente, abriga empreendedores angolanos, nigerianos e é um dos símbolos da nova migração africana para São Paulo.

Igreja Nossa Senhora Rosário dos Pretos – Originalmente, era localizada na praça Antônio Prado, onde foi erguida em 1722. Com o processo de urbanização, a antiga igreja foi demolida em 1903 e reconstruída em 1906 no Largo Paissandu.

Estátua da Mãe Preta – O símbolo exalta a figura da mulher negra, ama de leite, que criava os filhos dos senhores de engenho, nos tempos coloniais. O monumento foi inaugurado no aniversário de São Paulo, no ano de 1955.

Luiz Gama – Advogado, jornalista, escritor e patrono da abolição da escravização no Brasil. Conquistou judicialmente a própria liberdade e passou a atuar na advocacia em prol dos cativos. Fundou o primeiro jornal ilustrado da cidade.

Editado por: Yana Lima

Revisão por: Gustavo Gilona