Símbolo da escravização de africanos e indígenas, ‘Sinhazinha’ de Parintins usa vestido com bonecos pretos

Imagem mostra a Sinhazinha do Boi Caprichoso ao lado de personagens pretos (Composição: Paulo Dutra e Weslley Santos/CENARIUM)

29 de junho de 2024

18:06

Isabella Rabelo – Da Cenarium

MANAUS (AM) – Em apresentação na primeira noite do 57° Festival Folclórico de Parintins, no dia 28, a sinhazinha do Boi Caprichoso, Valentina Cid, apareceu na arena do Bumbódromo com uma indumentária carregando bonecos que retratavam pessoas pretas e trazia nas mãos, bonecos do Pai Francisco e Catirina, personagens que representam pessoas escravizadas no Brasil Colônia (1500-1822).

Historicamente, a ideia do personagem “sinhazinha” remete a mulheres brancas esposas, filhas e parentes dos donos de engenho que escravizavam indígenas e habitantes da África do século XVI ao século XIX, no Brasil colonial. A imagem de Valentina Cid gerou debate nas redes sociais sobre o cunho de racismo estrutural do item do festival. O evento visa, em tese, homenagear a cultura dos povos originários e tradicionais da Amazônia.

Internauta critica a apresentação da sinhazinha (Arquivo Pessoal)

No ano passado, a sinhazinha Valentina Cid se envolveu em outra polêmica ao perder pontos por apropriação cultural. Ela usou uma indumentária da Orixá Oxum, uma entidade africana, preta. Especialistas apontaram um total equívoco da personagem em uma mulher branca interpretando um personagem que escravizava pretos em matéria publicada pela CENARIUM.

Valentinha Cid vestida de sinhazinha do Boi Caprichoso comete apropriação cultural (Reprodução/Instagram)
Racismo estrutural

O termo racismo estrutural foi estudado pelo escritor, filósofo e advogado Sílvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, no livro Racismo Estrutural, sob a coordenação da escritora Djamila Ribeiro (2009), que aborda o assunto sob ponto de vista interdisciplinar.

O termo é usado para reforçar o fato de que existem sociedades estruturadas com base na discriminação que privilegia algumas raças em detrimento das outras. No Brasil, nos outros países americanos e nos europeus, essa distinção favorece os brancos e desfavorece negros e indígenas.

Entender que o racismo é estrutural, e não um ato isolado de um indivíduo ou de um grupo, nos torna ainda mais responsáveis pelo combate ao racismo e aos racistas”, explicou o ministro em uma postagem sobre o livro Racismo Estrutural.

O ministro Sílvio Almeida é um dos grandes estudiosos do racismo estrutural (Agência Brasil)

Para a advogada e jornalista, especialista em africanidades e ativista do movimento negro, Luciana Santos, a imagem da sinhazinha do boi Caprichoso Valentina Cid com uma indumentária trazendo pessoas pretas como bonecos no vestido traz uma forte carga relacionada ao racismo estrutural.

A profissional apontou ainda invisibilização sofrida pelos personagens negros no enredo do Festival de Parintins. “Parece que, numa tentativa de tentar se redimir (do equívoco com a representanção da Orixá Oxum em 2023), a Comissão de Arte mais uma vez deu um tiro no pé, com uma imagem carregada de colonialismo e eurocentrismo. Um verdadeiro “fogo amigo”, que é o que a população negra não precisa”, declarou Luciana.

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A advogada e jornalista Luciana Santos (Arquivo Pessoal)

“Mulheres Negras eram cruelmente violentadas por mulheres brancas. Eram estupradas pelos senhores e depois ainda eram vítimas da raiva das sinhás que as viam como o objeto de desejo de seus maridos. Nossa sociedade nasceu dessa violência colonial”, completou Luciana.

O sociólogo Luiz Antônio de Souza afirmou que é necessário ter atenção ao processo de “embranquecimento” do boi, e do enredo do festival, que vem acontecendo desde a adaptação do Bumba Meu Boi, que teve origem no Estado do Maranhão.

“O Boi, nas primeiras manifestações, era uma história com elementos negros muito bem demarcados, muito contundentes. O pai Francisco e a mãe Caterina eram negros e tinham muito mais presença. A sinhazinha, por exemplo, não existia na história original. Então você vê um processo de mudança do boi, o boi vai sofrendo um processo de embranquecimento, até o ponto de desaparecer os elementos negros do boi”, pontuou.

O sociólogo Luiz Antônio de Souza (Divulgação)
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Veja vídeo da apresentação desta sexta-feira, 28:

Sinhazinha traz bonecos de pessoas pretas no vestido e nas mãos (Reprodução/Redes Sociais)
Contexto histórico

O enredo do Festival Folclórico de Parintins se baseia na história chamada “auto do boi, onde o casal de escravos Francisco e Catirina matam o boi do senhor da fazenda para servir de alimento, e então se inicia um ritual para ressuscitar o animal. A sinhazinha, neste contexto, sendo filha do fazendeiro, faz parte do lado branco do festival, como uma integrante da Casa Grande.

“Sinhá” era a forma com a qual os escravizados e as escravizadas designavam a senhora, a patroa, durante o período escravocrata, que representa uma história de violência e opressão contra as pessoas negras e indígenas no Brasil Colônia.

A CENARIUM tentou ouvir a Comissão de Arte do Boi Caprichoso sobre o uso de bonecos pretos na indumentária da sinhazinha Valentina Cid, mas até o fechamento desta matéria não recebeu retorno.

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