No ‘Julho das Pretas’, Caprichoso leva para arena Oxum representada pela sinhazinha

Oxum é uma entidade africana, preta (Reprodução)

04 de julho de 2023

13:07

Luciana Santos – Especial para Agência Cenarium**

MANAUS – O mês de julho é extremamente importante para as mulheres negras no Brasil e na América Latina. No dia 25, comemoramos o Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha e o Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder quilombola da região do Mato Grosso, que durante décadas administrou e defendeu seu povo e território dos ataques dos colonizadores. Em função das duas datas, o movimento de mulheres negras passou a considerar o mês de julho como o “Julho das Pretas”, em que diversas atividades são realizadas em alusão ao protagonismo, luta e resistência desse grupo, que ainda constitui a base da pirâmide social e econômica, apesar de ser a maioria da população brasileira. É um momento de celebrar as que vieram antes e empoderar as que aqui estão na luta contra as opressões de gênero, raça e também de classe social.

Infelizmente, no Amazonas, no dia 1º de julho, durante o Festival de Parintins, ocorreu um fato que vai à contramão de toda essa celebração e esforço conjunto na luta antirracista. O Boi-Bumbá Caprichoso, em sua segunda noite de apresentação, que dizia dedicar à luta dos povos quilombolas, traz para a arena a figura da Orixá Oxum representada pela sinhazinha da fazenda, uma mulher branca e que, no simbolismo da festa, é a fiel integrante da Casa Grande, a filha do Colonizador.

O primeiro ponto a ser observado é que Oxum é uma entidade africana, preta. A apropriação cultural e o epistemicídio têm há muito tempo roubado dessa deusa sua africanidade e negritude, mas é preciso registrar que há uma intensa luta do movimento ligado às religiões de Matriz Africana no sentido de reverter essa violência colonial contra nossa fé e nossos ancestrais.

E a segunda observação também está ligada ao quesito fé: a religião oficial durante a colonização era a Católica (que defendeu a tese de que africanos não possuíam alma e que, portanto, podiam ser escravizados); então fazer crer, como apresentado na arena, que uma mulher branca e abastada, como a sinhazinha, incorporaria Oxum, é de uma falsidade agressiva a quem teve sua religiosidade criminalizada e ainda hoje, em 2023, não consegue exercê-la em sua plenitude em função do racismo religioso. A liberdade religiosa é prevista na nossa Constituição Federal de 1988, mas os casos de agressões a fiéis do Camdomblé, Umbanda, Tambor de Mina, Terecó, etc. estão aí para confirmar que há um grande abismo entre a lei e o dia a dia em sociedade.

Em terceiro lugar, Oxum é a representação da beleza e feminilidade. Trazer esses atributos em uma mulher branca é reforçar o padrão eurocêntrico de beleza que nos foi imposto. É atacar a autoestima de pessoas negras.  É nos fazer reviver a raspagem obrigatória de cabelos antes da travessia-morte pelo Oceano Atlântico, é nos fazer lembrar que mulheres negras eram expostas em circos como aberrações. Como esquecer a história de Sarah Baartman, a  “Vênus Ostentote”, que, em 1810, foi levada da África do Sul para a Inglaterra para ser exibida nestas feiras? Sarah foi vilipendiada mesmo depois de morta, com pedaços de seu corpo exibido em museus de Paris por décadas e somente teve direito ao descanso de seus restos mortais em terras ancestrais após anos de uma briga jurídica que terminou em 2002.

Foram anos de luta também do Movimento Negro até o Black is Beautiful ganhar espaço e, mesmo assim, a menos de uma década passamos a ter produtos de beleza destinados as nossas peles e cabelos. Apesar disso, ostentar um cabelo black ou tranças africanas ainda podem ser um empecilho ao mercado de trabalho caso você seja uma pessoa negra, pois serão associados a sujeira e desleixo; já se for uma pessoa branca, no máximo será vista como excêntrica. Isso vale também para os preenchimentos labiais. Quantas vezes não fomos vítimas de apelidos na escola pelos nossos “beiços”? Hoje, as agressoras ou as companheiras desses agressores gastam rios de dinheiro em ácido hialurônico. E são vistas como lindas, dignas de serem “As mais bonitas da fazenda”. Já bocas como a minha continuam sendo vistas como dignas de repulsa. Manter a autoestima num País racista como o Brasil não é fácil e não precisamos de fogo amigo para aumentar barreiras, respaldar preconceitos.

Um quarto apontamento é sobre o conjunto da cena. Vemos quilombolas descalços, um forte simbolismo da escravidão, pois sapatos eram símbolo de status. Aí alguém pode alegar: Não, a ausência dos sapatos era para representar a ligação dos povos tradicionais com a terra, com a natureza. Isso poderia ser até verdade se a maioria da população tivesse essa leitura contracolonial ou decolonial (como preferirem nomear a escola), mas a verdade é que mesmo entre os nossos (os negros) ainda há um longo caminho de autoafirmação, de estudos e de leitura racial e crítica. Para multidão, a cena é só a visão das figuras dos livros escolares que nos restringem à escravidão e invisibilizam a riqueza cultural, intelectual e natural existente em África. É a história única mandando lembrança e comprovando que a implementação da Lei 10.639/2003 nunca ocorreu como deveria.

O quinto apontamento também vem do conjunto da cena: uma mulher negra canta um Ponto de Oxum durante a entrada da Sinhá na arena. Gosto da reflexão de Lélia Gonzalez quando ela fala sobre os lugares aceitáveis e determinados para corpos negros. E um desses lugares é o entretenimento. No texto “O apoio à causa da Namíbia”, nossa grande filósofa diz o seguinte: “a pessoa negra é vista como um objeto de entretenimento. Essa tipificação cultural dos negros também assinala outro elemento comum condensado em atributos corporais: força/resistência física, ritmo/sexualidade. Não é preciso dizer aqui que o homem ou mulher negros que não se adéquem a esses parâmetros são rejeitados pelo estereótipo.”.

No parágrafo seguinte do mesmo texto, Lélia complementa, focando na visão da sociedade brasileira sobre a mulher negra: “Vale observar que a expressão popular mencionada anteriormente-‘Branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar’-tornou-se uma síntese privilegiada de como a mulher negra é vista na sociedade brasileira: como um corpo que trabalha, e que é superexplorado economicamente”. Não podemos esquecer ainda que além de servir as sinhás e sua família, éramos vítimas de castigos impostos por essas mesmas mulheres quando tínhamos o azar de ser o alvo da lascívia dos senhores. Era a revitimização após o estupro perpetrado pelo colonizador.

Por fim, trago ainda Lélia Gonzalez em seu genial texto “Racismo e Sexismo na cultura brasileira”. Na epígrafe, a escritora descreve uma festa/palestra organizada por brancos em que negros são convidados, mas postos em segundo plano, pois os anfitriões se colocam no posto de conhecedores verdadeiros da realidade e história negra.  Ao assistir na noite do último sábado a cena que descrevi até aqui, me senti no mesmo lugar dos personagens criados por Lélia. E resolvi ser a “neguinha atrevida” a apontar os erros de seus anfitriões, porque é preciso “que o lixo fale, e numa boa”.  Precisamos entender a “identificação do dominado com o dominador”, como Lélia fala lembrando nosso irmão caribenho Franz Fanon.

Sou uma torcedora do Caprichoso desde sempre e acredito que amar também é contribuir e ajudar a retirar véus de uma cegueira coletiva que mata em diversas dimensões. É um alerta e cobrança pública, já que públicos são os fatos e também a intenção do boi de resgatar as origens negras desta festa popular. Foram anos de apagamento do povo negro no Festival de Parintins e tenho horror só de lembrar do black face de Mãe Catirina. Espero que o Conselho de Arte esteja mais atento, que haja de fato um compromisso com a pesquisa profunda sobre nossas raízes, história e religiosidade para que se rompam todas as amarras do colonialismo e da colonialidade. Que a memória de nossos mestres e mestras ancestrais sejam exaltadas em sua completude e que a estrela que nosso Touro Negro traz na testa possa brilhar majestosamente livre de qualquer tipo de racismo, machismo ou classismo.

Leia também: Dia de Oxum: fiéis recorrem ao orixá feminino para resolver problemas financeiros e do amor

(*) Luciana Santos é jornalista e advogada, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Público, Direitos Humanos e em Processo Civil, Africanidades e Cultura Afro-brasileira e possui MBA em Marketing e MBA em Gestão empresarial.

(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.

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