Sucesso da Netflix, Wandinha usa de sarcasmo para ironizar a colonização na Amazônia

Irônica, sarcástica e acidamente inteligente, essas são as características de 'Wandinha', nova série da Netflix dirigida por Tim Burton (Thiago Alencar/AGÊNCIA AMAZÔNIA)

04 de dezembro de 2022

18:12

Mencius Melo – Da AGÊNCIA AMAZÔNIA

MANAUS – Mais um sucesso da Netflix, a série “Wandinha” (Wednesday, Netflix, 2022), dirigida pelo genial Tim Burton e estrelada pela já icônica Jenna Ortega, ganha terreno e avança em audiência tocando em feridas de forma ácida. A bola da vez foi a colonização na Amazônia.

Em uma cena do terceiro episódio, Wandinha oferece produtos em uma loja e diz: “Aproveitem seu fudge peregrino “autêntico”, feito com grãos de cacau cultivado pelos povos oprimidos da Amazônia. O quê? As vendas sustentam o branqueamento da história americana. E o fudge só foi inventado 258 anos depois. alguém quer? Não.”, diz ela, causando repulsa no público que, em seguida, boicota a iguaria.

Veja o trecho do vídeo:

(Reprodução/Internet)

Na cena, clientes adentram ao salão da loja e Wandinha paramentada em um figurino que remete ao período colonial norte-americano, começa e explicar sobre a iguaria que irá oferecer ao público. Em tom sarcástico, discorre sobre a origem geográfica e opressora do produto. Espantados com as informações, o público não só rejeita o doce como se retira em massa do estabelecimento.

Na cena, Wandinha provoca polêmica ao oferecer iguarias resultantes da exploração dos povos da maior floresta do planeta (Reprodução/Internet)

A fala da personagem remete ao passado e ao presente da região mais debatida no mundo contemporâneo. Em uma só frase, o texto toca na questão agrária (cultivo de monocultura), que em muito tem a ver com desmatamento levado a cabo pelo agronegócio, e na veia antropológica do passado escravagista que tanto sacrificou povos no Brasil e, em especial, na Amazônia. A repulsa dos clientes da loja é um claro recado semiológico de que o mundo (o de Tim Burton, particularmente) não aceita tal realidade.

“Só os gênios conhecem e dominam a dose exata de uma crítica. Esse é o caso de Tim Burton. Ele, de longe, é um dos melhores cineastas da atualidade”, declarou o sociólogo Luiz Antônio. “O cinema é entretenimento e fantasia, mas, a era DC e Marvel deixaram o cinema meio chato e, aí, quando você assiste algo que combina com uma crítica ácida, uma crítica dura, é muito interessante”, observou o cientista social.

Gravura que retrata a exploração violenta de povos indígenas na Amazônia brasileira durante o período colonial (Reprodução/Internet)

Considerações

Para Luiz Antônio, é preciso considerar o destino das exportações brasileiras. “O cinema hollywoodiano tem um jargão que diz “follow the money” (‘siga o rastro do dinheiro’) e quando a gente se pergunta quem é que está desmatando e para onde está indo essas madeiras? Parte das madeiras retiradas da Amazônia vai para a construção civil e não é construção de casas populares. São casas de alto padrão no Brasil e no mundo. São casas em São Paulo, Rio de Janeiro, Nova Iorque, Paris…”, acusou.

Já o cineasta Sérgio Andrade detestou o contexto e a proposta da cena. “Imagens como essas revelam a ignorância secular do hemisfério norte com os países ditos em desenvolvimento. Acho essa série Wandinha equivocada em muitos aspectos. É lamentável”, criticou. “Considero essa ‘crítica’ bem raquítica e sem graça, isso é para agradar elite que se acha engajada. Eu sou o tipo de pessoa que não me deixo levar por sucesso de filmes que essa geração instagramável usa para parecer politizada”, disparou.

O agro

Responsável pela riqueza da balança comercial nacional, o agronegócio passou a ser, também, o vilão do meio ambiente, em especial, no desmatamento amazônico. Entre os produtos mais exportados estão a soja, com 29,9% no total das vendas, com uma receita de US$ 3,1 bilhões, de acordo com a Confederação de Agricultura e Pecuária (CNA). A carne bovina vem, em segundo lugar, com US$ 889,5 milhões. No Mato Grosso, Estado integrante da Amazônia Legal, os conflitos entre fazendeiros, indígenas, trabalhadores do campo e quilombolas se acirram por conta do avanço sobre a terra e, consequentemente, a floresta.

O cacau é cultivado pelos Yanomami, em Roraima, e se constitui em alternativa econômica à exploração violenta do garimpo (Reprodução/Rogério Assis-ISA)

De acordo com o Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 1.608 “Ocorrências de Conflitos por Terra” somente em 2020 no Brasil. O número foi o maior número registrado desde 1985, quando o relatório começou a ser publicado. Esse número também é 25% superior a 2019 e 57,6% a 2018. Esses conflitos envolveram 171.968 famílias. As “Ocorrências de Conflito por Terra” referem-se a casos de pistolagem, expulsão, despejo, ameaça de expulsão, ameaça de despejo, invasão, destruição de roças, casas, bens.

O cacau, citado no texto da personagem Wandinha, foi introduzido na Amazônia pelos portugueses, primeiramente, no Pará, em 1679. Atualmente, a Bahia, Estado do Nordeste brasileiro, é o maior exportador de cacau. Mas, ao contrário do que a personagem Wandinha ironiza, o cacau não é um vilão para a floresta. “Pelo contrário, o melhor cacau produzido na Amazônia é o cacau plantado no sistema de agrofloresta, até porque ele se adapta muito bem na região”, finalizou Luiz Antônio.