Vozes contemporâneas dos povos originários falam sobre o que é ser indígena na atualidade

No dia em que se celebra o Dia do Índio, que ainda utiliza termo pejorativo, a REVISTA CENARIUM ouve vozes contemporâneas dos povos originários sobre o que é ser indígena na atualidade (Reprodução)

19 de abril de 2022

19:04

Marcela Leiros – Da Revista Cenarium

MANAUS (AM) – Há séculos, os indígenas no Brasil travam batalhas por direitos básicos como demarcação de territórios, saúde e educação de qualidade, assim como pela quebra de estereótipos que os colocam em “caixas” e as tentativas de padronizar os mais de 896,9 mil indígenas — número indicado no último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010.

Neste mês, em que se celebra o Dia do Índio, data que ainda utiliza um termo pejorativo, a REVISTA CENARIUM ouve vozes contemporâneas dos povos originários e mostra que, se em outro tempo era preciso sair dos rincões do Brasil para reivindicar direitos, atualmente, as tecnologias oportunizam que o eco dessas vozes chegue ao outro lado do mundo. A comunicação tem aberto portas para a conquista dos mais diversos espaços de representatividade.

Com relação à língua falada, o Censo 2010 identificou 274 línguas indígenas no Brasil. Com tanta diversidade entre os povos originários, a quebra dos estereótipos já acontece há algum tempo, mas a vontade de poder representar é algo que motiva indígenas como Tukumã Pataxó, de 22 anos. Nascido e criado na cidade de Santa Cruz Cabrália, no extremo sul da Bahia, Pataxó cursa Gastronomia, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), tem mais de 180 mil seguidores, nas redes sociais, e busca produzir conteúdo com a finalidade de quebrar estereótipos.

“Quando a gente vai para a ‘cidade grande’, para a capital, é outro mundo. Lá, eu pude perceber a questão do preconceito que está muito enraizado. Aí, comecei a trazer esse conteúdo, postei no Facebook uma foto minha, caracterizado, e outra foto com a roupa normal, e falei que eu podia estar na aldeia ou na cidade, trajado ou com roupa normal, e não deixaria de ser indígena, porque isso está em nosso sangue, e isso viralizou. Vários outros indígenas entraram em contato comigo porque se identificaram. Para mim, era só comigo que acontecia aquilo, mas não”, contou Pataxó à REVISTA CENARIUM.

O influenciador ainda destaca que a tentativa de padronizar os indígenas é um dos pensamentos que devem ser quebrados. “O índio, para quem não sabe, é aquele que os portugueses viram ao não chegarem à Índia. Foi um nome dado aos povos indígenas e o índio é algo pejorativo. Quando se fala do índio é como se falasse de todos os povos em uma pessoa só, mas somos várias nações. Atualmente, são mais de 300 povos indígenas”, enfatiza ele.

Celular vira ferramenta de luta

Tukumã Pataxó também ressalta que os povos indígenas têm feito suas vozes serem ouvidas além das comunidades, e os smartphones e a internet são as principais ferramentas que possibilitam a disseminação veloz do que é compartilhado em qualquer lugar do mundo. 

“Eu lembro que os mais velhos contavam que saíam daqui do extremo sul da Bahia e iam andando, sem saber como chegar até Brasília para lutar pela demarcação de território. Hoje em dia, a gente está evoluindo com o tempo. Temos internet e isso ajuda muito na luta. O celular virou uma ferramenta de luta, não é luxo”, compartilha.

No Amazonas, a concentração

O Censo 2010 do IBGE ainda apontou que a Região Norte concentra a maioria das localidades indígenas: são 4.504, 63,4% do total, seguida das regiões Nordeste (1.211), Centro-Oeste (713), Sudeste (374) e Sul (301). Apenas o Amazonas tem 2.602 localidades indígenas e dos dez municípios com maior concentração, sete estão no Estado. A cidade de São Gabriel da Cachoeira tinha 429 localidades na ocasião do Censo e é considerada a cidade mais indígena do Brasil.

É no Amazonas que estão lideranças como Beto Marubo e Samela Sateré-Mawé. Beto, indígena da etnia Marubo, da Aldeia Kumãnya, no Alto Rio Içá, e membro da Organização Representativa dos Povos Indígenas da Terra do Vale do Javari (Unijava), é referência na luta pela preservação dos grupos isolados no Vale do Javari, no Amazonas. À REVISTA CENARIUM, ele relembra os principais avanços conquistados pelos indígenas, ao longo do tempo, e os principais desafios a serem superados. 

“Os avanços, primeiramente, são os dois artigos constitucionais que balizam as regras referentes ao direito indígena, em consonância com as leis internacionais, como o Artigo 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho] e os direitos dos povos indígenas da ONU [Organização das Nações Unidas], reconhecida no Brasil. Ter a questão das cotas para indígenas, assim como os negros, foi fundamental para essa conquista”, explica ele.

“O principal desafio, a meu ver, é dar total autonomia para que a coletividade indígena possa dizer a forma como quer sobreviver no atual contexto de mudanças relacionadas à questão ambiental, com a inclusão das minorias no cenário nacional, tanto econômico, social e profissional. Mas, respeitando a vivência. Que a gente não perca as nossas especificidades, a nossa cultura, nesse processo avassalador da tecnologia do mundo moderno”, enfatiza Beto Marubo.

Beto Marubo, da aldeia Kumãnya no Alto Rio Içá, é membro da Organização Unijava e referência na luta pela preservação dos grupos isolados no Vale do Javari (Reprodução)

Possibilidades e oportunidades

Já Samela Sateré-Mawé tem 25 anos e reside na Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé, em Manaus. Cursando Biologia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA), a jovem ativista ambiental e comunicadora indígena enfatiza que a principal definição dos povos indígenas, no Brasil, no século 21, é a conquista de espaços.

“Eu acho que nós, povos indígenas, estamos em todos os espaços. Nas universidades, estamos ocupando espaços na política e na medicina e continuamos mantendo nossa cultura”, ressalta ela, destacando ainda que a educação é o que mais tem possibilitado as conquistas. “Nós estamos conquistando a representatividade, mas o que precisa ser garantido é a educação de qualidade, para que a gente consiga ingressar no ensino superior e se formar nas mais diversas áreas. A gente precisa de possibilidades e oportunidades”.

É falando sobre ocupar esses espaços que Samela relembra dois importantes acontecimentos protagonizados pelos indígenas, em 2021, e que tiveram na internet o motor propulsor: A COP (26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima), em Glasgow, na Escócia, onde participou de painéis para discutir a preservação e marcou presença na Marcha da Juventude pelo Clima, na Marcha Geral pelo Clima, e ainda na mobilização contra o Marco Temporal, em Brasília (DF). 

“A causa indígena e a causa ambiental não podem se separar, porque a causa ambiental tem tudo a ver com os territórios indígenas, que são grandes protetores das questões ambientais, porque nós estamos no território e somos os principais defensores. Enquanto mulher, indígena, jovem da Amazônia, sair daqui para falar em outro continente que as ações das pessoas afetam o nosso dia a dia foi muito importante, mas também é triste, porque a gente não deveria estar se prestando a esse papel para as pessoas fazerem o óbvio”, explica.

“A internet é uma ferramenta de luta e resistência que a gente utiliza para lutar pelos nossos direitos. A gente está se apropriando e demarcando espaços, ocupando telas”, conclui ela.

Da Amazônia para o mundo

Assim como Samela, a Amazônia também foi ouvida pelo mundo por meio da ativista indígena do povo Paiter Suruí, em Rondônia, Txai Suruí. Aos 24 anos, ela atraiu os holofotes do mundo ao discursar na abertura da COP26 e sua fala atraiu críticas do presidente Jair Bolsonaro. Atualmente, a indígena atua como coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental (Kanindé) e do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia.

“Hoje, a comunicação também é um instrumento de garantia dos nossos direitos. É através das redes sociais, da internet, que a gente consegue fazer as denúncias, desmistificar estereótipos racistas, que a gente consegue recontar a nossa história. E isso passa não só por estar nas redes sociais, mas também por ser protagonista de quem está contando a nossa história, por exemplo: ser quem está filmando, quem está produzindo os conteúdos, não ser somente personagens desse conteúdo”, pontua ela. 

Txai Suruí, liderança indígena de Rondônia, ganhou reconhecimento internacional ao discursar na COP26 (Reprodução)

Txai ainda relembra que, apesar dos avanços, a luta dos indígenas deve permanecer, principalmente, no tocante aos constantes ataques contra os direitos territoriais dos povos originários. “Um dos desafios que a gente vem passando, atualmente, é, inclusive, lutar contra ataques que a gente vem sofrendo do Legislativo, como o PL 490, que quer acabar com os nossos territórios indígenas, o PL 191 que quer permitir a mineração dentro dos nossos territórios, ainda que estejamos dizendo que não queremos”, conclui ela.