A violência contra a mulher nas letras da MPB

Divinizadas em obras magistrais, mas, violentadas em outras, as mulheres seguem como elemento de inspiração na MPB (Thiago Alencar/Agência Amazônia)

15 de abril de 2023

16:04

Mencius Melo – Da Agência Amazônia

MANAUS – Exaltada nas letras da Música Popular Brasileira (MPB) em obras como “As Rosas Não Falam”, de Cartola, “La Belle de Jour”, de Alceu Valença, “Ana de Amsterdã”, de Chico Buarque, ou na icônica “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim & Vinicius de Moraes, a mulher brasileira está no panteão de compositores que a divinizam. Mas existem obras da MPB que foram e são cantadas a plenos pulmões e trazem, nas letras, a violência de gênero em estado, literalmente, bruto.

Nos versos de “Faixa Amarela”, samba famoso imortalizado na voz de Zeca Pagodinho, é possível encontrar o seguinte verso que retrata, realmente, a violência: “…Mas se ela vacilar, vou dar um castigo nela, vou lhe dar uma banda de frente, quebrar cinco dentes e quatro costelas…”. Outro famoso sambista que enveredou pela rima agressiva foi Bezerra da Silva. No samba, “Quem Usa Antena é Televisão”, ele cantou: “…Lá na minha bocada, a crioula do Chico pedia socorro, chorava, gemia, o coro comia, a nega apanhava que nem um ladrão… Ele disse que quem usa antena é televisão e só estava cobrando da nega essa vacilação…”.

O galã Sidney Magal uniu flores, violência e um toque ‘ninja’ na letra de ‘Se Te Agarro Com Outro Te Mato‘ (Reprodução/Redes Sociais)

Até mesmo o “latin lover” Sidney Magal, ícone da música hormonal brasileira, numa versão mais caliente da MPB, incorreu no erro grosseiro. No refrão de “Se Te Agarro Com Outro Te Mato”, ele canta: “Se te agarro com outro te mato! Te mando algumas flores e depois escapo…”. A pérola retrata um feminicídio com requintes de poesia, já que flores são usadas para, digamos, enriquecer a letra e o refrão da música. O recurso é simpático, mas a letra é um afronte nos dias de hoje.

Papel fundamental

A REVISTA CENARIUM entrevistou especialistas para avaliar esses contextos. A psicóloga Samiza Soares fez uma leitura: “A saúde mental é um tema cada vez mais importante na sociedade atual, e quando falamos, especificamente, das mulheres, é fundamental ressaltar a importância da valorização e empoderamento feminino. A música popular brasileira tem um papel fundamental nessa questão”, avaliou.

Bezerra da Silva é um sambista respeitado, mas a letra de ‘Quem Usa Antena é Televisão‘ chega a ser chocante (Reprodução/Edson Meirelles)

Samiza contextualizou e fez um paralelo sobre o que é criado e as origens de expressões artísticas como a MPB: “É importante lembrar que a arte, em suas diversas formas de expressão, pode ser um reflexo da sociedade em que vivemos e, por vezes, trazer à tona questões difíceis e dolorosas. No entanto, é fundamental que a arte seja uma ferramenta de conscientização e transformação social, e não uma forma de normalizar ou glamourizar a violência contra a mulher”, destacou.

Independente de origens e linguagens, a psicóloga chama atenção para as responsabilidades dos artistas. “A MPB, como um dos pilares da cultura brasileira, tem o papel fundamental de contribuir para a transformação social e o avanço na luta pelos direitos das mulheres. É preciso que os artistas tenham consciência da sua responsabilidade social e utilizem a sua arte como uma ferramenta para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, livre de violência e opressão”, ponderou.

Dolo e culpa

A delegada Debora Mafra pontua que os versos de Sidney Magal não condizem com a realidade atual do País (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Para a titular da Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher (DECCM), Debora Mafra, é preciso perceber a violência: “Há um dito popular que diz que a vida imita a arte. No entanto, podemos dizer que o inverso também é verdadeiro. Na literatura, devemos sempre fazer uma diferença entre o ‘eu lírico’ e o autor. Aquele que se personifica para levar aos leitores ou expectadores uma realidade que vem da alma do autor. É neste contexto que, há muito tempo, vemos a violência travestida nos versos musicais e nas demais artes”, observou.

Mafra acredita que é preciso superar tendo o diálogo como forma de entendimento. “É importante que, a cada momento, consigamos enxergar tais violências travestidas; devemos debater o assunto com aqueles que nos cercam, com a finalidade de banir tais artes da vida humana, já que, com dolo ou com culpa, elas são enraizadas nas nossas mentes, fazendo com que a violência seja absorvida como algo natural do comportamento humano”, analisou.

Para a psicóloga Samiza Soares, a arte não pode glamourizar ou normalizar a violência de gênero (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Aviso importante

A delegada faz uma ressalva sobre o contexto: “Tais músicas retratam um comportamento social aceitável para a época de sua elaboração, mostrando os costumes sociais, com forte teor, na maioria das vezes, machista e violento”, pontuou. Questionada se o personagem da música de Sidney Magal poderá mandar “flores e escapar”, Debora foi taxativa: “Se um agressor agarrar uma mulher encontrada com outro e matá-la, ele não escapará dos rigores das leis vigentes no País, por se tratar de feminicídio”, avisou.

A socióloga Marklize Siqueira assinalou que obras são produto do tempo e do entendimento humano (Reprodução/Arquivo Pessoal)

A socióloga Marklize Siqueira comentou: “Obras de arte são construções humanas datadas e situadas. Carregam a beleza, mas também as tragédias do seu tempo. O Brasil ocupa a quinta posição de maior número de assassinatos de mulheres no mundo, num ranking de 84 países. O patriarcado marca, profundamente, as relações sociais na nossa história. Neste sentido, é difícil qualquer esfera social sair imune a esta tragédia humana, e a arte e artistas também acabam por reproduzir em várias ocasiões essas relações de desigualdade e violência”, finalizou.

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