Artistas indígenas ocupam territórios nacionais e internacionais

26 de outubro de 2023

14:10

Alessandra Leite – Especial para a Agência Amazônia

SÃO PAULO (SP) – Em tempos de retrocessos relacionados aos direitos dos povos indígenas sobre seu solo – em que leis como a do Marco Temporal ameaçam demarcações de terras não ocupadas na data da promulgação da Constituição de 1988 – artistas amazônidas representantes dos povos originários conquistam territórios da ordem do divino, para além das margens da delimitação: os espaços de grandes mercados da arte no Brasil e no mundo.

Sem desmerecer a importância da ocupação territorial física, tão sagrada quanto, é a tomada de territórios antes relegados aos povos indígenas, como universidades, academias de Letras e até as galerias e museus de arte.

Dois desses artistas conquistadores são os amazonenses das etnias Tukano e Wanano, respectivamente, Duhigó e Dhiani Pa’saro, cujos nomes figuram entre os mais importantes da contemporaneidade na lista do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp), considerado o mais importante da América Latina e do Hemisfério Sul, e agora consagrados com a principal exposição do ano do Masp – “Histórias Indígenas” que ficará em cartaz de abril a fevereiro de 2024, seguindo viagem depois para Bergen, na Noruega, além de estarem em destaque na Aura Galeria também na capital paulista até início de dezembro, com uma seleção de trabalhos denominada “Hori: Tukano e Wanano”.

Duhigó: uma artista Tukano desbravando mundo

Artista reconhecida nos cenários nacional e internacional, com quase duas décadas de experiência, Duhigó participou, em São Paulo, da abertura da exposição “Histórias Indígenas”, onde está em destaque a sua obra “Nepu Arquepu” (Rede Macaco, 2021), cuja imagem retrata um ritual de nascimento de uma criança do povo Tukano, história que eterniza uma marca cultural. Em paralelo, Duhigó brilha no lançamento da seleção de obras em exposição na Aura Galeria, em parceria com a Manaus Amazônia Galeria de Arte, representante de ambos os artistas indígenas mencionados.

“Eu agradeço muito a todos por tudo o que estou vivendo e nunca imaginei ser possível. Duhigó passou por muitas dificuldades na vida. Mas nunca deixei de enfrentar e lutar pela minha arte. Hoje tenho minhas telas no Masp, em São Paulo, na galeria do Largo, em Manaus, em outras partes do mundo. Quando Duhigó fechar os olhos, a minha arte contará minha história”, fala a artista, em sua linguagem peculiar e generosa, ao se esforçar para comunicar na língua portuguesa.

Para Duhigó, logo no começo de sua carreira, estar entre as pessoas brancas chegava a ser aterrorizante. “Pensava que só existia Duhigó de indígena no mundo. E eu me sentia como quem está no deserto sem abrigo para se esconder. Hoje em dia vejo que não era nada do que Duhigó pensava. Eu estava no meio de outros irmãos, que falavam da maneira deles, eu falo outra língua e todos nós somos importantes”, ressalta.

“Rede Macaco” ou “‘Nepu Arquepu” traz cena de parto em maloca e tem destaque no Masp (Edson Kumasaka/Acervo Masp/Divulgação)

A artista, cuja sensibilidade aponta para o amor pelos seus ancestrais, revela ser hoje a guardiã da história de seus familiares, especialmente os avós, com quem morou na infância. “Na época de meus avós havia todas essas coisas. Mas eles não puderam deixar nada escrito. Eu já vou conseguir deixar algo das histórias para as outras gerações de indígenas que irão nascer”, disse Duhigó.

“Eu pinto o que não existe mais, e isto é muito importante para o meu povo. As máscaras de ritual, os potes que minha avó usava na aldeia e que os Tukano não fazem mais. Também pinto as lembranças da minha infância na aldeia. Elas só existem na minha memória, no meu imaginário. Pinto para não deixar a minha cultura morrer”, acrescentou.

“Essa exposição é um reconhecimento e valorização dos nossos trabalhos indígenas que antes não eram vistos com admiração e respeito. Estou muito feliz de ver minha obra novamente exposta no MASP, e espero que o pessoal que me conhece vá lá ver e quem não me conhece, me conheça agora, através desse trabalho”, disse Duhigó que também está com exposições simultâneas em São Paulo, na Aura Galeria com “Hori: Wanano e Tukano”, expondo obras suas e de Dhiani Pa’saro. Ela também tem simultaneamente participação a Bienal da Amazônias, em Belém e uma individual “Miriã Sutiri”, em Manaus, na Galeria do Largo, promovida pelogoverno do Amazonas via secretaria de cultura e economia criativa.

Inspiração: comunidades, trajetórias e sonhos
Constelação de ouriços de Duhigó simula vista panorâmica de aldeias (Manaus Amazônia Galeria de Arte)

Tanto Dhiani quanto Duhigó guiam os seus trabalhos pelo interesse mútuo de registro em suas respectivas comunidades e trajetórias, inspirações e histórias de ancestralidade.

Porém, quando se trata da estética das obras, o desdobramento toma sentidos opostos. Aos jogos formais, geométricos e abstratos da marchetaria de Dhiani, Duhigó responde com uma pintura figurativa e grafismos orgânicos. “De um lado a linha e do outro o círculo”, destaca a curadoria da exposição.

Se por um lado as marchetarias em pequenos formatos de Dhiani desenham uma linha nas paredes da Aura galeria, os ouriços de Duhigó, por sua vez, formam essa constelação circular – como se fosse uma simulação da vista panorâmica de aldeias, tipicamente orbiculares, com suas respectivas malocas avizinhadas uma da outra. Esferas amazônicas, os ouriços da artista se edificam quase como um ensaio a respeito dessas existências paralelamente coletivas e ao mesmo tempo individuais, características da vida na aldeia. Também se assemelham a planetas alinhados, remetendo ao misticismo do céu, com sua presença mística tão forte entre os povos indígenas.

Para Duhigó, o ato de pintar soa como um mecanismo memorialista, em uma tentativa de assegurar alguma permanência material à cultura Tukano, tanto em termos mitológicos e imagéticos, quanto próprios aos saberes populares e lembranças afetivas que atravessam o seu imaginário.

Dhiani Pa’saro diante de suas obras de marchetaria, inspiradas em cores de pássaros e outros bichos (Manaus Amazônia Galeria de Arte)

E quando se trata de trazer os sonhos para suas obras, Dhiani Pa’saro mostra, em sua arte, as imagens oníricas que permeiam suas lembranças de viagens noturnas a outras paragens. “Na pintura eu sempre sonho e a partir do sonho eu pinto. Sonho uma escada subindo para o céu. Uma vez sonhei com uma escada subindo lá no meio do Rio Negro”, contou.

A arte em marchetaria, segundo o artista, é como se fosse a visão em lupa de um animal. São grafismos que representam casco de besouro grande que voa de noite, borboletas levantando voo ao sentir o pisar do homem por perto, as cores do bicho preguiça. “A maioria das minhas obras tem grafismo de cestarias, da minha etnia Wanano, e dos Tikuna, etnia da minha esposa. Se você jogar uma lupa em cima, você vai ver esse trançado, esse desenho”, explica.

Em suas obras, o Dhiani conta que tenta imitar luz e sombra, calcula muito bem, usando a matemática, para que fique perfeito, no alinhamento, o diálogo com as histórias indígenas, trançadas em cada peça, alcançando os guardiões que se deixam encantar por cada história grafada nas madeiras e nas telas sagradas de cada artista.

Por fim, os artistas do Amazonas estão desbravando as fronteiras do Estado, sem perder sua essência e ocupando territórios antes inimagináveis para um indígena, sempre tão apagados pela história colonizadora. Aguerridos, mostram ao mundo a força de sua ancestralidade, pelo ativismo pungente da arte saltando para além de suas flechas: em suas telas e pincéis.

Obra de arte em marchetaria do artista da etnia Wenano, Dhiani P’asaro (Manaus Amazônia Galeria)
Onde apreciar as obras:

São Paulo: Histórias Indígenas

MASP: Avenida Paulista, 1578, Bela Vista, São Paulo

Galerias do 1° andar e 2° subsolo do local, no período de 20 de outubro de 2023 a 25 de fevereiro de 2024.

São Paulo: Hori: Tukano e Wanano: Dhiani e Duhigó

Aura Galeria

Rua da Consolação, 2767. Jardins, São Paulo/SP
Estacionamento conveniado L’Officina, na Rua da Consolação, 2825

21 de outubro a 02 de dezembro de 2023.

 Manaus

Exposição “Miriã Sutiri – Máscaras de Pássaros”, com obras da artista Duhigó

Curadoria de Denilson Baniwa

Galeria do Largo

Rua Costa Azevedo, 290, no Centro de Manaus

Às 19h, com entrada gratuita.