Brasil produziu mais de 50 toneladas de ouro com indícios de ilegalidade em 2021, revela estudo

O metal extraído ilegalmente era declarado à Agência Nacional de Mineração, pelos criminosos, como se tivesse saído de áreas onde a exploração é permitida (Reprodução)

11 de outubro de 2022

14:10

Iury Lima – Da Agência Amazônia

VILHENA (RO) – Como reflexo da ineficácia na rastreabilidade de minérios extraídos e processados no Brasil e da facilidade no esquema de ‘esquentamento do ouro’, o País produziu, em 2021, 25% mais do metal com indícios de ilegalidade em relação ao ano anterior: 52,8 toneladas, que “podem ter saído” de Terras Indígenas (TIs), Unidades de Conservação (UCs) e locais que vão além dos limites permitidos para a mineração, segundo levantamento do Instituto Escolhas. 

O valor, que representa mais da metade da produção nacional, escancara a constante ameaça a povos e comunidades tradicionais e reforça, por exemplo, a existência de um comércio ilegal de ouro para grandes empresas de tecnologia mundo afora, as chamadas big techs.

Mais da metade do ouro produzido no Brasil, em 2021, tem indícios de ilegalidade (Arte: Thiago Alencar/REVISTA CENARIUM)

A estimativa do instituto, levando em conta os dados obtidos com a Agência Nacional de Mineração (ANM) e a Rede Mapbiomas, é que no ano passado a produção brasileira de ouro chegou a 97 toneladas. Apenas 46% disso, ou seja, pouco mais de 44 mil quilos, foram produzidos de forma legalizada. Os outros 54% apresentam falhas, seja na comprovação de origem, seja na falta de registro na produção oficial daquilo que foi exportado. 

Apenas em 2021, 11 quilos do metal com indícios de ilegalidade não tinham informações de origem; mais de 170 quilos podem ter sido extraídos de áreas sobrepostas a UCs, enquanto mais de 6 toneladas seguiram para o mercado internacional, mesmo sem registro na produção oficial do País. O estudo também aponta que 20 toneladas tinham ‘títulos fantasmas’, ou seja, não apresentavam, sequer, indícios de extração e que outras 25 toneladas podem ter origem em áreas fora dos limites permitidos para a mineração.

A pesquisa ainda indica que quase 150 quilos de ouro podem ter sido explorados em territórios de povos originários.  “Estamos diante de uma situação bastante grave. Não é de hoje, mas ela tem piorado”, diz a gerente de portfólio do Instituto Escolhas, Larissa Rodrigues. Ela atribui a circulação ilegal de ouro no mercado à falta de controle e rastreabilidade. “É muito fácil você tirar o ouro, roubar o ouro de uma Terra Indígena, de uma Unidade de Conservação, e colocar no mercado por meio de esquemas de lavagem de ouro. Isso é facilitado, inclusive facilitado pela lei”, criticou Rodrigues, em entrevista à REVISTA CENARIUM.

Para Larissa Rodrigues, é “um absurdo” o ouro ainda não possuir um sistema sólido de rastreabilidade (Instituto Escolhas/Reprodução)

Dano pode ser maior

Os pesquisadores do Instituto Escolhas analisaram mais de 40 mil registros de comercialização de ouro para chegar aos resultados do levantamento. Ainda assim, os indicadores podem ser bem maiores, como explica Larissa Rodrigues. 

“Até pouco tempo não se tinha nem ideia de quanto ouro ilegal circulava pelo mercado (…) Claro que esse valor pode ser ainda maior, porque a gente sabe que tem ouro que mal passa por nenhum sistema de controle e não é registrado de forma alguma”, ponderou.

Rodrigues acrescenta que a equipe continua “‘linkando’ discrepâncias e trocas de informações do mercado para fazer volume e dar uma ideia [do cenário problemático] à sociedade, ao governo e às pessoas, em geral”

Gigantes do ramo de tecnologia têm interesse no ouro brasileiro para fabricação de produtos eletrônicos (Foto: Reprodução)

Interesse das ‘big techs’

Por resistir ao tempo e ser considerado um ótimo condutor de eletricidade, o ouro brasileiro é cobiçado por valiosas marcas do mercado de ‘big techs‘. Essas empresas utilizam o metal para fabricação de peças que vão em aparelhos celulares e televisores. É o caso de Google, Amazon, Apple e Microsoft, expostas numa recente denúncia do site Repórter Brasil, uma organização não governamental dedicada ao jornalismo investigativo.

Segundo a reportagem publicada no último mês de julho, as quatro empresas compravam ouro processado pela brasileira Marsam Refinadora, oriundo do garimpo ilegal em Terras Indígenas do povo Yanomami, Munduruku e Kayapó, na Amazônia. A Marsam, por sua vez, recebia o metal de outras duas empresas, que eram as responsáveis pela extração nessas TIs: a FD’Gold e a C.H.M do Brasil.

A consequência foi a perda do selo de qualidade concedido à refinadora pela RMI, entidade que credencia fornecedores de minerais ao redor do mundo. Com a remoção da lista, a Marsam não é mais considerada confiável para vender ouro a cerca de 300 empresas listadas na Bolsa de Valores dos Estados Unidos.

A Repórter Brasil também relaciona a perda da certificação com a prisão preventiva do fundador da FD’Gold, Dirceu Frederico Sobrinho, conhecido como ‘Rei do Ouro’ no Brasil. Ele é investigado pela Polícia Federal (PF) por envolvimento no esquema de balsas de garimpo do Rio Amazonas. Já a filha dele, é sócia da Marsam.

“Essa ligação da Marsam com o Dirceu é que causa o problema para essa refinadora”, contou à REVISTA CENARIUM o jornalista da Repórter Brasil, Daniel Camargos, que assina a reportagem e investigou as transações durante seis meses. 

“A gente mostrou, teve acesso a documentos e conseguiu provar isso tudo, como esse ouro suspeito de ilegalidade, de ser extraído ilegalmente em Terras Indígenas, passa pela FD’Gold, chega na Marsam, de lá é refinado e chega às big techs”, detalhou Camargos.

O mercado de ouro comprado do garimpo, ele é muito suscetível à falsificação, porque a nota pode ser escrita à mão, enfim. É muito suscetível a lavar o ouro, falsificar a procedência disso. Esse ouro estava passando tranquilo pelo mercado norte-americano”, lamentou o jornalista.

Garimpo ilegal de ouro em Roraima (Daniel Marenco/AP)

Para Camargos, as irregularidades são infladas pela omissão federal. “É uma criminalidade que está encontrando terreno fértil na falta de fiscalização do governo federal nesses últimos anos. E os indígenas, principalmente, são as maiores vítimas desse descaso”, avaliou.

Sobre a perda do selo de qualidade da Marsam, Larissa Rodrigues comenta que se trata de uma vitória para os povos da floresta. “Os territórios indígenas têm sido invadidos por operações ilegais para roubar o ouro. Então, toda vez que a gente tem uma cobrança, um questionamento da origem do ouro, é positivo, sim. E isso também mostra como é importante haver esse conjunto de comprovações e de documentações de origem, para que quando aconteça uma certificação ou algum selo, isso esteja ancorado na realidade”, declarou. 

Procuradas pela reportagem, as empresas Marsam, C.H.M do Brasil e a FD’Gold, que pertence a Dirceu Frederico Sobrinho, não deu retorno até a publicação desta matéria. As big techs Google, Microsoft e Amazon afirmaram que não vão comentar o caso. A Apple já havia informado ao site Repórter Brasil que não compraria mais da Marsam Refinadora. 

Rastrear é possível (?)

‘Lavar o ouro’ ou ‘esquentar o ouro’ são termos que evidenciam a facilidade de burlar as fiscalizações. Um exemplo é o que aconteceu, no último mês de setembro, em Rondônia. A Polícia Federal descobriu que uma organização criminosa financiava garimpos clandestinos no Estado, falsificava a procedência em Mato Grosso e declarava a origem para a Agência Nacional de Mineração como se o metal tivesse sido extraído de áreas permitidas. 

Larissa Rodrigues afirma que para reverter “e até mesmo romper” a invasão de territórios, é preciso que a rastreabilidade, de fato, funcione como um sistema. “Não são coisas de outro mundo, são coisas que já existem”, diz a especialista do Instituto Escolhas. 

“É basicamente dar, tanto para o consumidor quanto para as empresas que estão produzindo ouro de forma legal e correta, uma garantia de que elas tenham informação de onde vem esse ouro e todo o caminho que ele passa até chegar ao consumidor. Isso pode ser feito por meio de registro de nota fiscal eletrônica por todo o caminho, documentos de transporte e custódia, ou seja, cada vez que o ouro sai de um ponto para o outro, ele precisa ser controlado”, explicou.

“E, também, por meio de documentação de origem e de licenciamento ambiental. Quando a gente tem esse conjunto de documentos, é possível controlar o fluxo do ouro, desde a área de origem até as exportações”, complementou Larissa Rodrigues.

Ela avalia como “um absurdo” que diversos outros produtos possuam sistemas de rastreabilidade, como o café, mas não o ouro. “Além de gerar todos esses problemas que a gente vê na Amazônia e de ser um mercado que está inundado por indícios de ilegalidade, tem um valor muito alto. A rastreabilidade deveria ser feita imediatamente”, lamentou Rodrigues, por fim.