Cemitério indígena da época de Marechal Rondon vira lavoura de soja, em RO; ‘História enterrada e jogada numa vala’

Agora, com base na lei, a Masutti Agropecuária Ltda. incluiu, em sua plantação, os túmulos quase centenários que, segundo especialistas, deveriam ser reconhecidos como patrimônio histórico e cultural (Foto: Revista Cenarium)

20 de fevereiro de 2022

11:02

Iury Lima — Da Revista Cenarium

VILHENA (RO) — Com apenas 400 metros quadrados, o que antes foi um território sagrado para indígenas Nambiquara, Paresí e de várias outras etnias, há mais de duas décadas tem sido o domínio do agronegócio. Perdido em meio à lavoura de soja, o cemitério ficava localizado a 500 metros da antiga estação telegráfica de Vilhena, no interior de Rondônia, delimitado dentro de um terreno que pertencia à União até o fim de 2021, sendo de responsabilidade da Força Aérea Brasileira (FAB), mas que foi vendido para uma das maiores empresas da agropecuária no País. 

Agora em 2022, com base na lei, diferente das invasões que já ofendiam a memória daqueles ali sepultados, a Masutti Agropecuária Ltda. incluiu, em sua plantação, os túmulos quase centenários que, segundo especialistas, deveriam ser reconhecidos como patrimônio histórico e cultural da cidade e do Estado. 

A CENARIUM fez imagens aéreas da região e constatou o plantio de soja sobre o solo sagrado para os indígenas (Foto: Revista Cenarium)

“É um prejuízo gigantesco, porque é parte da nossa história que está sendo cavada, enterrada e jogada numa vala. Se o cemitério é indígena, faz parte da história de todo mundo, porque todos nós temos descendentes”, declarou à reportagem da REVISTA CENARIUM, a presidente do Conselho Estadual de Política Cultural (CEPC) de Rondônia, Valdete Sousa, que organiza um abaixo assinado virtual para reverter a situação.

O descaso mora ao lado

Os pesquisadores não sabem ao certo quantos corpos estão enterrados, mas estimam que sejam cerca de 100. A área está na vizinhança da Casa de Rondon, como é chamado o museu e parque cultural, construído em homenagem ao engenheiro militar, a partir das instalações da pequena habitação de onde ele costumava se comunicar com o mundo, desde que chegou a Vilhena — município que viria a se formar a partir da criação do posto e do trabalho dos telegrafistas —, por volta de 1909. 

Hoje, o parque de Marechal Cândido Rondon é território tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), diferente do cemitério, que fica tão próximo, mas segue ignorado pelo mesmo órgão que, ainda por cima, nega sua existência.

O parque cultural Marechal Rondon, conhecido como Casa de Rondon, em Vilhena, a 705 quilômetros de Porto Velho (Governo de Rondônia/Reprodução)

“A gente está tão desesperado com essa ideia de progresso, porque Rondônia é isso: é um Estado construído com essa ideia de progresso; ‘crescer, crescer, crescer’. A pessoa vem de fora para ganhar dinheiro, explora, explora e explora. É tão fixa essa ideia de progresso, que a gente está esquecendo as coisas pelo caminho”, lamentou a presidente do CEPC.

“Nós temos que pensar que a preservação de um patrimônio histórico também gera renda, porque pode resultar em turismo e cultura. Um Estado que explora só a economia por meios agrícolas não consegue pensar nos outros cenários”, acrescentou Valdete Sousa.    

Para a presidente do CEPC, plantar soja sobre o antigo cemitério indígena é ‘jogar a história numa vala’ (Iury Lima/Cenarium)

Sousa também destaca que, com base nos registros fotográficos de décadas atrás, quando os descendentes integrantes de comunidades tradicionais e familiares de pioneiros de Vilhena, também enterrados no local, ainda podiam visitar a área, é possível constatar como o cemitério era pequeno. Com o descaso e o desrespeito que atravessam o tempo, as marcações feitas com cruzes de madeira são visíveis apenas nas fotos em preto e branco.

“Não era um cemitério gigantesco, eram algumas covas que haviam ali. Era um cercadinho de madeira pequeno, não é uma área muito grande. Por isso, talvez, não fizesse tanta diferença assim para quem trabalha com atividade agrícola. (…) Para a história faz muita diferença, né?”, declarou.   

Demarcação da área e identificação das covas são visíveis apenas nos registros fotográficos (Vitório Abrão/Reprodução)

Memórias soterradas pelo agro

Aos 66 anos, Luiz Antônio Zonoecê é uma das vítimas da profanação do território sagrado. Há mais de cinco anos, ele já não reconhece a região onde tem dois irmãos enterrados há quase tanto tempo quanto a própria idade. Foram enterrados quando Zonoecê era ainda uma criança. Hoje, ele sente falta de prestar as homenagens aos parentes falecidos. 

“Eu passo todos os dias ali e também vejo, né, que foi desrespeitado e que passaram máquina em cima, tirando totalmente a área em que eram enterradas as pessoas. Então, foi um desrespeito com a comunidade, com a história, principalmente com quem tem pessoas enterradas ali”, desabafou. 

Luiz Antônio Zonoecê é filho de Marciano Zonoecê, indígena Paresí adotado por Marechal Rondon, que trabalhou em Vilhena como telegrafista a partir dos anos 1940 (Iury Lima/Cenarium)

Luiz Antônio é como se fosse neto de Marechal Rondon. O pai dele, o indígena aculturado Marciano Zonoecê, foi adotado pelo militar no Estado do Mato Grosso e enviado ao Rio de Janeiro para estudar. Veio para Vilhena anos depois, na década de 1940. Marciano foi o verdadeiro morador da estação telegráfica, onde trabalhou para Rondon. 

“Quando meu pai chegou na localidade de Vilhena, no posto telegráfico, já existia aquele cemitério, então, já existiam pessoas enterradas. Teve um prefeito que fez um serviço muito bom ali, ele fez uma cerca de madeira, mas que queimou devido ao fogo. Então, fizeram uma cerca de arame para a preservar, mas também, com o tempo, [o lugar] foi abandonado e, aí, desapareceu”, revelou Luiz Antônio Zonoecê. 

Agora, o indígena da etnia da Paresí, que vive a mais ou menos 15 quilômetros do cemitério, em um bairro de Vilhena, só quer uma coisa: “pelo menos que  tivessem respeito pelas pessoas enterradas e que preservassem aquela área que faz parte da história da cidade”.

Justiça favorece destruição

Preocupado com a destruição da história de Vilhena, o professor de Língua Portuguesa, também apaixonado por História, Cledemar Jeferson Batista fez uma denúncia que acabou arquivada pelo Ministério Público Federal (MPF). Batista afirma que recorreu, “pois tem argumentos para isso”.

“Há anos, a gente vem reivindicando que o espaço seja preservado, que seja demarcado, seja um referencial histórico. Então, não nos causa nenhum estranhamento, nenhuma surpresa, a ausência de conhecimento tanto da Aeronáutica quanto do Ministério Público Federal, porque eles não têm referências, mas existem muitas pessoas pioneiras, pessoas que chegaram aqui há muitos anos, que sabem da existência do cemitério”, afirmou o autor da denúncia à CENARIUM.

Professor de Língua Portuguesa, Cledemar Jeferson Batista protocolou recurso contra o arquivamento da denúncia pelo MPF (Iury Lima/Cenarium)

O que dizem os citados

Em nota, o MPF afirma que nem o Iphan, nem a Força Aérea e, nem mesmo a Masutti Ltda. reconhecem a existência do cemitério, razão pela qual arquivou a denúncia, deixando prazo para recurso. 

“O Iphan informou que pesquisou no seu próprio acervo on-line e verificou que o tombamento é apenas da área do museu (estação telegráfica construída pela Comissão Estratégica de Linhas Telegráficas de Cuiabá a Porto Velho, Comissão Rondon), não havendo menção de qualquer cemitério registrado ou tombado no local. O órgão também informou ao MPF que não foram localizados artefatos históricos ou vestígios na área informada que indicassem existência de cemitério com indígenas e personagens históricos da Comissão Rondon. Já a FAB comunicou que não foram encontrados registros de área tombada criada para proteger um cemitério localizado em área de sua propriedade (…) Por fim, a Agropecuária Masutti Ltda. relatou que, após receber ofício do MPF, enviou nova equipe ao local para nova avaliação da área, mas não vislumbrou nenhum resquício de artefatos históricos”, assinam os procuradores da República. 

À CENARIUM, o Ministério Público Federal também disse que havendo recurso “irá analisar os argumentos trazidos pelo denunciante e, conforme o caso, poderá adotar novas medidas a respeito do tema”, finalizando a nota.

Para o professor Cledemar Jeferson, ainda assim, há negligência. “A gente achava  que por estar sob o comando da Aeronáutica, haveria um cuidado com a preservação da memória e a preservação do espaço físico. E isso não aconteceu. Eu sou apenas um professor de Língua Portuguesa, mas eu me senti na obrigação moral de tentar fazer com que essa parte da história não seja apagada, que não seja soterrada pela soja ou por qualquer outra situação”, disse.

Recorrência

Fato semelhante ocorreu em parte da Terra Indígena (TI) Uru-Eu-Wau-Wau, em novembro de 2021, também por investida do agronegócio, em Rondônia. Parte da reserva, que abrange 12 municípios, foi desmatada ilegalmente, onde havia um cemitério. O local foi transformado em pasto e ocupado por uma criação de gado, segundo denúncia da ativista indígena e coordenadora da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Txai Suruí. 

A ativista confirmou a irregularidades depois que, em setembro, identificou, por meio de imagens de satélite, uma enorme área em chamas dentro da TI.

“Invasores queimaram a floresta para colocar milhares de cabeças de gado em cima de um antigo cemitério indígena!”, escreveu a jovem nas redes sociais. “Essa é a triste realidade da Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, aqui em Rondônia: muitas invasões, ataques, madeireiros, garimpeiros e grileiros”, disse ainda. 

Txai Suruí usa as redes para denunciar criação de gado em cemitério indígena da TI Uru-Eu-Wau-Wau (Txai Suruí/Instagram)

Valdete Sousa, presidente do Conselho Estadual de Política Cultural, avalia que a situação se trata, na realidade, de um triste cenário que, de forma comum, se repete em Rondônia. “Isso é uma recorrência, e acredito que não só no Estado. Talvez no País, isso aconteça normalmente também, mas Rondônia é crítico, porque nós temos esse histórico de descaso com o patrimônio”, lamentou a presidente do CEPC.

A CENARIUM fez imagens áreas da região em Vilhena; veja

Plantação de soja descaracteriza cemitério indígena em Vilhena, RO (Vídeo: Revista Cenarium)