‘Chão Velho’: história dos 352 anos de Manaus é contada por registros de azulejos e ladrilhos

A estudante de arquitetura Clíssia Monteiro, responsável pelo perfil @chãovelho no Instagram (Priscilla Peixoto/Cenarium)

24 de outubro de 2021

16:10

Priscilla Peixoto – Da Cenarium

MANAUS – Quem anda pelas ruas do Centro Histórico de Manaus pode estar acostumado a olhar e observar os prédios e obras arquitetônicas da cidade que celebra, neste domingo, dia 24, 352 anos de história. Porém, poucos devem estar habituados a observar o chão por onde caminham, ou, especialmente, os azulejos, ladrilhos e pisos que fazem parte dessa história. É com um olhar diferenciado para baixo que a estudante de arquitetura Clíssia Monteiro começou a registrar e publicar, na página ‘Chão Velho’, esses pedaços de construções antigas da cidade. Em um bate-papo com a CENARIUM, a manauara de 29 anos compartilhou um pouco sobre a ideia e os desafios do projeto.

Onde você pisa, o passado já pisou!. A frase publicada na página do Instagram resume em poucas palavras o objetivo da estudante de resgatar e preservar parte da história, por meio dos revestimentos que resistem ao longo dos 352 anos da capital amazonense, e que podem ser encontrados em várias construções antigas da cidade.

Filha única e moradora do bairro da Compensa, na zona Oeste de Manaus, Clíssia conta que o “gatilho” para compartilhar a admiração pelos pisos históricos da cidade surgiu há pouco mais de dois meses.

“Sempre fui apaixonada pela beleza dos nossos prédios, casas e construções grandiosas, principalmente nos arredores do Centro. Ao crescer, isso se intensificou e lembro que tive o privilégio de, quando mais nova, visitar com frequência os museus e lugares históricos da cidade. Isso influenciou”, conta a futura arquiteta.

Azulejos do Museu da Cidade de Manaus, na rua Gabriel Salgado, Centro de Manaus (Reprodução/Instagram)

Olhar diferenciado

A universitária enfatiza que, ao contemplarem as belezas arquitetônicas, detalhes e até mesmo as mensagens que as antigas construções detêm são comuns, na maioria das vezes, que os admiradores observem as paredes, janelas, portas, telhados e, geralmente, esquecem o chão.

“Percebo, nas pessoas que vão aos locais históricos, que elas se prendem apenas à linha do olhar e, no máximo, olham para cima, mas creio que teria que ser diferente e começar pelo chão. Para mim o chão tem toda uma história. O chão que você pisa hoje, muita gente do passado também caminhou por ali. Sua mãe, seu pai, um ente querido, um presidente, um papa, um rei, uma princesa. Acho lindo como o trabalho de tanto tempo atrás resiste e abriga nossos passos”, explica Clíssia.

Cores e registros

Banheiro antigo e desativado de uma clínica ocupacional localizada no Centro de Manaus (Reprodução/Instagram)

Com pouco mais de 203 seguidores e quase 40 publicações, o tímido perfil de Clíssia vai ganhando espaço a cada postagem. De registro em registro, as diferentes cores, formatos e tamanhos dos pisos vão conquistando admiradores e ensinando um novo jeito de olhar para essa pequena, mas importante, parte da pavimentação de Manaus que ainda resiste.

“É algo muito pequeno ainda, mas com um valor grandioso. Em pouco mais de dois meses já tenho seguidores que entram em algum estabelecimento e mandam fotos para mim quando percebem que o chão pode ser de uma época mais antiga. É bem legal quando a gente nota que a pessoa entendeu a essência do projeto, sabe?”, celebra a estudante.

Apesar de não ter ajuda e orientação direta de um profissional de História, ela se empenha nas pesquisas por conta própria e revela um pouco do que sabe sobre a mensagem contida em cada piso que encontra.

“Os ladrilhos hidráulicos antigos eram feitos a mão, o do Palácio Rio Negro, por exemplo, o Barão da Borracha pegou uma técnica indígena e fez com que os escravos pintassem o mesmo ladrilho 180 vezes. E estamos falando de uma pecinha de 15×15, então, imagina como cada peça dessa tem valor”, explica a universitária.

Palácio Rio Negro, localizado na Avenida 7 de Setembro, Centro Histórico de Manaus. (Reprodução/Instagram)

Mas, diferente do Palácio Rio Negro, Clíssia destaca que a maioria das peças são de origem portuguesa e, atualmente, pesquisa para compreender melhor o significado das artes impressas nos ladrilhos da época. “Ainda não achei um estudo mais profundo que aborde a temática, mas posso dizer que, antigamente, quanto mais colorido era o chão e até os azulejos das paredes das casas, mais condições financeiras a família tinha”, explica.

Desafios e percepções

Dentre aos lugares já visitados pela manauara em busca de boas fotos estão bares antigos localizados no Centro da cidade e hotéis como o Hotel Casa dos Frades, assim como o Museu da Cidade de Manaus, Palácio da Justiça, Hospital Beneficente Portuguesa e também alguns outros pisos históricos fora de Manaus, nas cidades de Fortaleza e Jericoacara, no Ceará.

Sobre os desafios relacionados ao acesso às construções, Clíssia conta que nem sempre é bem recebida nos lugares e compartilha quais são os pontos que mais gostaria de registrar e compartilhar nas redes.

“Há uma casa no centro da cidade que tenho muita vontade de fotografar o piso, mas, infelizmente, a dona da casa não foi muito receptiva e não permitiu o acesso. Há, também, uma certa burocracia para entrar nos prédios que são históricos, envio e-mail, explico a intenção, mas na maioria das vezes não há retorno. Fica complicado, pois não tenho como entrar se não tiver as portas abertas”, lamenta.

Loja comercial situada na Avenida 7 de Setembro, no Centro de Manaus (Reprodução/Instagram)

De acordo com a administradora do @chãovelho, nem tudo que parece ser tão antigo é de fato. Segundo ela, são necessárias percepções para distinguir o que é verdadeiramente parte integrante da história. A universitária relata que diversos estabelecimentos, ao passarem por reformas, perdem o chão original e com isso parte histórica daquele lugar também se perde.

“Por ser conhecida entre meus amigos como uma caçadora de chão velho, alguns deles me procuram para tirar foto pensando que é algo antigo, mas, às vezes, nem é e pelo tamanho e pintura dá para perceber. É uma pena o que fazem ainda aqui em Manaus, quando tiram o chão verdadeiro e colocam o porcelanato no lugar com, no máximo, uma imitação ou pintura que remeta há anos anteriores”, lamenta.

Apoio e planos

Apesar da iniciativa que contribui para a preservação da história, cultura e arte da cidade, tendo as redes sociais como aliadas e disseminadoras, a jovem manauara afirma que ainda não recebe apoio de nenhuma autoridade relacionada ao patrimônio histórico arquitetônico de Manaus.

A longo prazo, o plano da manauara apaixonada pelo lugar onde mora é ampliar a área de exploração que, por hora, inclui somente a região central de Manaus, e organizar eventos culturais e exposições voltadas ao tema. “Sou apaixonada pelo que faço. Ainda está no começo, mas tem um valor que nem sei mensurar. É a minha forma de valorizar Manaus e eternizar nas redes o quanto ela é especial”, finaliza.

Veja os bastidores de como Clíssia registra os ladrilhos:

Museu da Cidade de Manaus (Reprodução)