Com nova lei, Amazonas fortalece proteção das línguas indígenas

Indígena com a primeira Constituição Federal em língua Indígena lançada no Amazonas. (Fellipe Sampaio/SCO/STF)

08 de setembro de 2023

14:09

Ademir Ramos – Especial para a Agência Amazônia**

MANAUS – Os trabalhadores da educação escolar indígena e demais lideranças querem saber o que muda ou vai mudar a partir do momento que o governo do Amazonas tornar pública a Lei ordinária nº 6.303, de 19 de julho de 2023, que reconhece as línguas indígenas faladas no Estado como patrimônio cultural imaterial. Além disso, a Lei estabelece a co-oficialização de 16 línguas indígenas e, em tempo, instituiu a Política Estadual de Proteção das Línguas Indígenas do Amazonas.

Entre as lideranças indígenas, a Lei recebeu o apelido de “três em um”, pois com um único ato, o governo estadual contempla três determinações que consideramos de suma importância para o fortalecimento dos direitos dos povos originários. Resta-nos analisar a eficácia de suas ações no âmbito das políticas públicas no Estado.

A Lei 6.303/2023 é carregada de vários significados. A começar pela própria autoria do governador, em exercício, Tadeu de Souza, que a sancionou no dia 19 de julho de 2023, logo após o lançamento da Constituição Federal traduzida pela primeira vez para língua indígena Nheengatu, sob a direção da presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, ministra Rosa Weber, presente em São Gabriel da Cachoeira, município com maior densidade etnolinguística do Amazonas, localizado no extremo noroeste do Brasil, onde foi assinada a Lei.

O Governo do Amazonas, em chamar para si a salvaguarda das Línguas Indígenas no Estado, ajusta-se perfeitamente aos ditames da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – sobre Povos Indígenas e Tribais; a Declaração Universal dos Direitos Linguísticos e, particularmente a Organização das Nações Unidas (ONU) que instituiu 2022-2032, a Década Internacional das Línguas Indígenas.

Para cumprir os objetivos desta década, Manaus sediou o primeiro Encontro do Grupo de Trabalho Nacional focado nas discussões e análises sobre Políticas Linguísticas para o fortalecimento das línguas indígenas de 9 a 11 de agosto de 2023. O evento contou com a presença de 34 representantes de diferentes povos, juntamente com parceiros institucionais, tanto da academia quanto de organizações não governamentais. Na ocasião, foram discutidas e aprovadas as ‘Diretrizes para a Criação de Políticas Linguísticas para o Fortalecimento das Línguas Indígenas no Brasil’, marcando assim o início da Década Internacional das Línguas Indígenas no País.

As condições materiais nesse cenário são favoráveis para a efetivação dos direitos dos povos originários. Contudo, isso requer, sem dúvida, uma definição por parte do Governo do Amazonas em relação à planificação linguística, com foco na proteção das línguas. Isso inclui a criação de cursos específicos, programas de revitalização e manutenção, uma política editorial, o estabelecimento de escolas bilíngues e a promulgação de legislação específica. Destacam-se os direitos linguísticos e a proteção do patrimônio linguístico e cultural dos povos que moldaram nossa história.

A formatação da Lei do governo do Amazonas está centrada em dois capítulos. Vamos dar ênfase ao segundo, buscando responder à pergunta dos professores e demais lideranças indígenas que querem saber se a coisa é “para valer ou foi mais uma pernada, entre outras”.

Vamos aos termos da Lei. O capítulo segundo é o núcleo duro da norma em questão, trata-se “Da Política Estadual de Proteção das Línguas Indígenas do Estado do Amazonas”. Esta pompa é para anunciar tão somente as Diretrizes norteadoras desta Política de governo quanto ao reconhecimento, proteção, respeito e garantia. Preceitos legais já assegurados no arcabouço jurídico dos povos originários, sobretudo, a partir das conquistas da Constituição de 1988.

Pode ser que a Lei tenha contrariado a expectativas de algumas lideranças indígenas, que pela gravidade dos fatos querem porque querem medidas protetivas de políticas públicas que promovam, pelo menos, o Inventário da Diversidade Linguística no Amazonas, em articulação com o governo federal nos termos do Decreto nº 7.387, de 9 de Dezembro de 2010, que Instituiu o Inventário Nacional da Diversidade Linguística (INDL).

É sabido que para uma língua indígena ser incluída no INDL faz-se necessário, antes de tudo, produzir conhecimento sobre este universo linguístico, documentar seus usos, realizar um diagnóstico sobre as suas condições de vitalidade, focado no processo de formação e desenvolvimento cognitivo das comunidades, objetivando combater à violência contra esses povos.

À vista desse quadro, ameaçando o desaparecimento de línguas e falantes, urge estabelecer um programa efetivo de recuperação e proteção desse patrimônio cultural e civilizatória que se faz presente, principalmente no Amazonas, como bem justificou o senador Jorge Kajuru (PSB/GO), no PL N° 3690/2019, que dispõe sobre o desenvolvimento de programa de preservação, recuperação e transmissão das línguas indígenas brasileiras.

Movido por essas razões, somos seduzidos pelos ensinamentos de Rousseau (Ensaio sobre a origem das línguas – Capítulo VIII), quando nos faz ver a diferença entre uma atitude imediata e eloquente, com muita cinza e pouca brasa, a ofuscar as propriedades necessárias do fato linguístico e histórico travando à projeção do nosso Amazonas para além dos limites palacianos, porque: “Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar em torno de si, mas, para estudar o homem, importa que a vista alcance mais longe; impõe-se começar observando as diferenças, para descobrir as propriedades”.

Nada disso faz parte do escopo da Lei, “Da Política Estadual de Proteção das Línguas Indígenas do Estado do Amazonas”, seu objeto é dar publicidade às Diretrizes, ou seja, um “conjunto de instruções ou indicações para se tratar e levar a termo um plano, uma ação, um negócio”, como bem explica o Novo Aurélio Século 21.

De qualquer modo, as Diretrizes ou Intenções promulgadas na forma da Lei bem poderiam ser seguidas de um planejamento estruturante do governo do Estado, considerando a racionalidade do processo e de recurso afins.

A temática em questão, pela sua transversalidade tem assento na Universidade Estadual do Amazonas, em articulação com a Gerência de Educação Indígena da Seduc, Conselho Estadual de Educação Escolar Indígena, Fundação Estadual do Índio, Fundação de Amparo à Pesquisa, Secretaria de Cultura e Economia Criativa mais ainda, a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência, Tecnologia e Inovação.

Pela efetividade das ações e sua eficácia, o ato do Governo do Amazonas poderia propor a criação de um Grupo de Trabalho com prazo determinado para apresentar uma proposta política quanto ao objeto da Lei, qualificando as ações seguidas de planos, estratégias e valores, bem como, o compromisso dos atores na consecução de projetos e programas, ouvindo às comunidades indígenas.

Planejar, tecnicamente, é implementar e coordenar uma sequência de intenções a fim de transformá-las em realidade efetivas, em políticas concretas, mas, a motivação para o cumprimento desses objetivos resulta de decisão política do executivo, do parlamento e da mobilização do movimento indígena em alinhamento com a sociedade civil organizada.

Nessa perspectiva, penso que a Lei de Proteção das Línguas Indígenas do Amazonas é muito mais um chamamento para que os movimentos socioambientais, dos povos indígenas e das comunidades tradicionais possam unificar forças e se mobilizar intensamente junto ao Ministério dos Povos Indígenas visando à construção de uma Agenda de trabalho que possa ser discutida amplamente na 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-30), em novembro de 2025, em Belém (PA).

A estratégia é de fora para dentro e a luta dos povos originários, articulada com as comunidades tradicionais, está umbilicalmente vinculada às garantias de proteção das florestas e de sua biodiversidade numa dimensão Pan-Amazônica. Se os agentes públicos teimam em não compreender esse processo de inserção no mundo solidário global, eles serão isolados e como um capitão sem pátria serão execrados em praça pública e reprovados nas urnas por ignorar a grandeza da nossa Amazônia, bem como, a sua efetiva participação no mosaico das Nações.

(*) É professor, antropólogo, coordenador do Projeto Jaraqui e do Núcleo de Cultura Política da Amazônia, vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E-mail: [email protected]
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