Com Síndrome de Down e sem imunização contra Covid-19, grupo tem risco de morte elevado

A síndrome de Down não está incluída em nenhuma das medidas de controle da doença no Brasil. (Reprodução/Arquivo Pessoal)

18 de março de 2021

09:03

Michelle Portela – Da Revista Cenarium

BRASÍLIA – Familiares de portadores de Síndrome de Down vítimas de Covid-19 levam a vida devagar enquanto buscam superar o luto com recolhimento e gratidão. Em comum, dizem que o vazio deixado por estas pessoas não pode ser preenchido após uma vida inteira de dedicação e afeto sem limites oferecido por eles.

Delci Valim, de 55 anos, foi casada por 34 anos com José Carlos Valim, com o qual teve quatro filhos. O mais velho, Thiago, de 32 anos, era Down, inteligente e feliz. “Tudo o que ele queria ser, ele foi. Tinha muitos sonhos. Amava a escola e os colegas. Tinha a sua turma de amigos, onde ele saía e ia a passeios, namorava na escola e tinha muita vida social, amava dançar. Era luz”, explica.

Quando iniciou a pandemia, passaram a ficar em casa, isolados de todos. José ficou em home office por três meses, mas contraiu o vírus numa reunião de trabalho, em dezembro. “Thiago tinha uma ligação forte com o pai e sofreu com ele doente. Sem conseguir ficar distante do pai, ele também foi infectado uns dez dias depois do José apresentar os sintomas”.

Delci perdeu o esposo José Valim e o filho Thiago, ambos vítimas de Covid-19. (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Tratamento

Thiago não reagiu ao tratamento doméstico e uma tomografia revelou pneumonia viral, em meio ao colapso do sistema de saúde ocorrido em dezembro, quando faltou, inclusive, oxigênio para Unidades de Tratamento Intensivo (UTI). “A essa altura, eu já tinha perdido seis familiares para a Covid-19. Fomos para o hospital, mas o Thiago detestava a máscara do oxigênio. Com o tumulto no hospital, ele ficou muito nervoso, sem dormir e pedindo para vir para casa”.

Não houve tempo para o Thiago se recuperar. “Eu pedi ao médico para trazer ele para casa, que foi autorizado. Em casa, ele estava inquieto, não aceitava o oxigênio. E teve um momento em que os lábios dele começaram a ficar roxinhos. No carro, a caminho do pronto-socorro mais próximo, percebi que ele estava morrendo. Paramos no hospital no meio do caminho e meu filho já foi levado para a sala de reanimação. Eu implorei para ficar junto dele, mas não deixaram mais. Após uma parada cardíaca, ele não resistiu”.

Nesse período, José também estava internado e não sabia da morte do filho no dia 08 de janeiro. Delci também estava contaminada. “A tristeza no olhar dele era grande. O médico pediu para não falar nada para ele. Dez dias depois, no dia 18, ele se foi também, porque não conseguia mais lutar”, relata Marli. “O que mais dói é não ter acesso ao corpo, sem velório, sem ver no caixão, parece que não conseguimos acreditar. Mas de novembro para cá, eu já perdi 10 pessoas da minha família para a Covid-19”.

Drama

Fafá e o pai, Claudomiro dos Santos Félix, tinham em comum a alegria e o amor pela vida, um elo familiar ceifado pela pandemia. (Reprodução/Arquivo Pessoal)

Drama similar viveu a pedagoga Marília Pereira Félix, que perdeu a irmã, Fátima, aos 33 anos. “Meu pai se contaminou primeiro e começou a apresentar os sintomas. Fafá manifestou sintomas dois dias depois da internação do meu pai. Passamos por uma situação muito difícil e de grande angústia, pois não haviam leitos nas UTIs dos hospitais de Manaus”, relata.

Marília conta que depois de três dias em uma unidade de pronto atendimento, na zona Oeste de Manaus, a família conseguiu um leito de uma UTI no Hospital Delfina Aziz, após obter um mandado de segurança na Justiça do Amazonas. “Meu pai e minha irmã entubaram no mesmo dia. Meu pai faleceu no dia 09 de fevereiro e a Fafá, no dia 11, após uma parada cardiorrespiratória”, lamenta.

Luto

A irmã pedagoga, finalmente, começa a superar a dor e a refletir sobre o luto. “Ainda gostaríamos de ter vivido muitos momentos juntos. A alegria e simpatia dela era contagiante. Ela amava a escola, a família, os vizinhos”, diz. “Todos ainda dizem não acreditar no falecimento da Fátima, conhecida por todos como Fafá”.

Marília ressalta o quanto o vírus deixa sequelas nos que perdem seus entes queridos. “Minha mãe, que morava com meu pai e a Fátima, não retornou para a casa dela. Agora ela mora comigo e com a minha outra irmã, Camila. Estamos tentando seguir em frente com a imensa saudade que eles deixaram em nossos corações. E somos muito gratos a essa ‘pessoinha’ que tanto nos deu alegria e nos ensinou a ver o mundo de outra forma”.

Alto risco

A pandemia levou pesquisadores a investigar os efeitos da Covid-19 nessa comunidade. Final do ano passado, o relatório do jornal acadêmico Annals of Internal Medicine trouxe a informação de que pessoas com síndrome de Down têm dez vezes mais risco de morrer em decorrência da doença, “um grupo que não está estrategicamente protegido”, conforme classificaram na edição.

A análise envolveu mais de oito milhões de adultos que faziam parte de um projeto de avaliação de risco do novo coronavírus patrocinado pelo governo britânico. Dos 8,26 milhões de pessoas no estudo de rastreamento, 4.053 tinham síndrome de Down. Do total de pessoas com Down pesquisadas, 68 morreram e 40% destas mortes foram causadas pela Covid-19 – e 17 morreram de pneumonia ou pneumonite e as demais, de outras causas.

De acordo com o estudo, a gravidade da Covid-19 “correu após o ajuste para doenças cardiovasculares e pulmonares e para pessoas que vivem em casas de repouso, que nossos resultados sugerem que explicam alguns, mas não todos, os riscos aumentados” para as pessoas com a síndrome, afirmaram os pesquisadores.

A síndrome de Down não está incluída em nenhuma orientação das medidas de controle da doença no Brasil, tanto quanto nos países onde foram realizados o estudo – Reino Unido e Estados Unidos.

Análise

“No entanto, ela está associada a disfunção imunológica, insuficiência cardíaca congênita e patologia pulmonar e, dada sua prevalência, pode ser um fator de risco relevante, embora não confirmado, para Covid-19 grave”, concluíram os pesquisadores.

É o que também ressalta Omar Maia dos Santos, presidente da Associação de Pais e Amigos do Down no Amazonas (Apadam) e diretor regional Norte da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD) e conselheiro do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Estado do Amazonas (Conede/AM). 

“Devido às pessoas com síndrome de Down terem a imunidade muito baixa, o impacto da Covid-19 é muito forte. Desde dezembro, oito pessoas com Down morreram vítimas da pandemia”, explica Omar. “Não podemos dar a oportunidade para que eles possam contrair a doença, então, a maioria dos nossos associados está em casa, em isolamento, conforme incentivamos, mas alguns estão até sem trabalhar e isso deixa tudo mais difícil para as famílias”, finaliza.