Do nascimento da favela ao massacre de civis, Canudos está nas páginas de um novo romance

Escritor ambienta, em Canudos, a história de um personagem que muda de lado e passa a lutar em favor do povo empobrecido do Nordeste brasileiro (Thiago Alencar/AGÊNCIA AMAZÔNIA)

27 de março de 2023

20:03

Mencius Melo – Da Agência Amazônia

MANAUS – Um dos capítulos mais trágicos da historiografia social do Brasil, a “Guerra de Canudos” (1896-1897), volta a figurar como recurso dramático para a literatura. O evento está nas páginas de “Entre as Chamas, Sob a Água” (Ed. Labrador, 160 pág.), do escritor e jornalista Roosevelt Colini. Na trama, um militar, troca de lado e passa a combater o próprio exército brasileiro, convocado, à época, para exterminar o Arraial de Canudos e seus mais de 20 mil habitantes, seguidores do beato messiânico Antônio Conselheiro.

A AGÊNCIA AMAZÔNIA entrevistou o autor para saber detalhes sobre o romance e as motivações que o levaram a ambientar uma ficção em uma das mais dolorosas memórias da história real do Brasil. “Eu tinha 16 ou 17 anos, na escola pública, quando tivemos que ler Os Sertões, de Euclides da Cunha. Era o começo dos anos 1980, ou seja, uma sociedade sem redes, onde a transmissão do conhecimento se dava por meio da palavra escrita e da TV aberta. Para os jovens que frequentavam o ensino médio, o hábito da leitura era muito mais presente do que hoje. Mesmo assim, penei muito para ler Os Sertões, e o esforço de leitura acompanhava na mesma medida o assombro diante da história do conflito”, recordou R.Colini.

Jagunços e soldados se enfrentaram no sertão da Bahia em um dos mais dramáticos episódios da história do Brasil: a Guerra de Canudos (Flávio de Barros/Reprodução)

O escritor continuou as observações: “Canudos é um momento de nossa história que não podemos esquecer. Foi um episódio tão horroroso e tão insólito, em certos aspectos, que a literatura tem, ai, material inesgotável. As implicações do conflito, na alma brasileira, estão ainda presentes, e não tomar conhecimento dessa história equivale a uma omissão em relação ao presente. Por tudo isso, desde que comecei a me dedicar à literatura, com vinte e poucos anos, eu desejava escrever um romance ambientado em Canudos”, adiantou.

Coronelato

Colini aborda o contexto da época para explicar os passos tomados pelo governo de Prudente de Morais, então mandatário da recém-nascida República. “Sabemos que, talvez, o principal estopim para que o conflito evoluísse para uma guerra civil foi o descontentamento dos coronéis locais diante da escassez de mão de obra provocada pelo afluxo constante de sertanejos na direção de Canudos. A começar pelo governo da Bahia, o socorro aos coronéis foi imediato, na forma de tropas e repressão”, sintetizou.

O escritor destacou as dificuldades para se reconstituir os fatos, porque o extermínio de Canudos não foi só humano, foi material também. “A história material de Canudos foi dizimada junto com a população de Arraial. Se em um primeiro momento o exército demoliu e incendiou cada vestígio do local, anos depois, a construção de um açude inundaria tudo e impediria a arqueologia do arraial. Somos obrigados, então, em um primeiro momento, a nos deter sobre o social para depois tentar chegar no particular”, informou.

O corpo de Antônio Conselheiro pouco antes do fim da guerra. Mais um herói mitificado em meio à miséria do sertão nordestino (Flávio de Barros/Reprodução)

Favela

A guerra civil de Canudos, em solo nordestino, deixou marcas na história nacional e contribuiu para grifar a ausência de políticas públicas para a habitação. O termo “favela” nasceu com a morte de Canudos, é o que diz R.Colini: “Eu diria que Canudos, como nenhum outro evento de nossa história, se mantém grudado na alma do País. Isso porque o termo favela, como sinônimo de condição de moradia, surge a partir de Canudos. Quando os soldados retornaram da guerra, sofreram calote do governo, que havia prometido compensações financeiras aos ex-combatentes”, pontuou.

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Colini continuou: “Abandonados (eles também) pelo poder público, esses soldados iriam construir habitações semelhantes àquelas que existiam em Canudos e as construíram nas encostas dos morros cariocas. E como serão chamados esses assentamentos? Favelas! Sim, o nome favela vem de Canudos (favela é nome de uma planta local e assim chamava o morro a partir de onde os militares bombardeavam a cidade: ‘Alto da Favela’). Portanto, Canudos inaugura a favela no País“, explicou.

Sinopse

Na aridez do sertão baiano, com armas em punho sob o sol escaldante, tropas avançam prontas para dizimar civis e enfrentar jagunços que têm como trunfo o conhecimento geográfico – e a capacidade de sobreviver em situação miserável. A fome, a desidratação, as feridas abertas, as privações de sono e descanso rondam ambos os lados, assim como os urubus se aglomeram ansiosos pelas sobras dos embates. O romance histórico retrata a brutalidade da Guerra de Canudos, em uma terra banhada em sangue e desesperança, onde a dignidade é arrancada e a humanidade se esvai.

Em registro da época, os poucos sobreviventes de Canudos são apresentados com troféu de guerra pelo Exército brasileiro (Flávio de Barros/Reprodução)

No meio desse massacre, que eviscerou ambos os lados, o protagonista, um jovem combatente do Exército brasileiro, perde a empatia, a fé e o propósito. Acostumado às estratégias militares que forjaram os heróis nos campos de batalha, ele logo percebe o despreparo e a incompetência do exército para aquele cenário. O livro mostra que, sem instrução acerca do comportamento dos jagunços na guerra, o pelotão é surpreendido por um “inimigo invisível”. Para sobreviver, o soldado atravessa a trincheira e passa a combater os próprios colegas, enquanto sucumbe à solidão e ao odor podre da guerra.