Em RR, medida para proteger mulheres gera reações machistas: ‘E os direitos iguais?’

Em Boa Vista, capital de Roraima, mulheres poderão desembarcar de ônibus fora das paradas a partir das 21h (Foto: Divulgação / PMBV)

02 de janeiro de 2024

14:01

Adriã Galvão – Da Agência Amazônia

BOA VISTA (RR) – A permissão de embarque e desembarque de mulheres fora dos pontos de ônibus após as 21h escancarou o machismo em Boa Vista, capital de Roraima. A flexibilização foi anunciada pelo prefeito Arthur Henrique (MDB) em seu perfil no Instagram e gerou uma série de comentários, tais como “quero saber se os bandidos só roubam mulheres” e “cadê os direitos iguais?”. A medida está em vigor desde o último sábado, 30.

A iniciativa visa garantir mais proteção às mulheres que utilizam o transporte público à noite e busca, além de evitar roubos e furtos, reduzir as chances de assédio e violência sexual. “Essa é uma medida que foi pensada principalmente na segurança e no bem-estar das mulheres de nossa cidade”, explicou o prefeito.

Prefeito de Boa Vista, Arthur Henrique (Foto: Katarine Almeida / PMBV)

Nos comentários da postagem, enquanto alguns comentários parabenizam o gestor pela medida, outros se demonstram injustiçados. “Isso que é feminismo, queria que os homens tivessem os mesmo direito das mulheres”, “e os direitos iguais, meu prefeito?”, comentam dois homens. Outro escreve “Legal, os homens podem correr perigo kkkkkk… Cada uma”.

Uma internauta ainda tenta justificar: “Preciso te mostrar aqui os índices e estatísticas para você entender o porquê dessa medida?”. Em outros comentários, o sexismo fica ainda mais evidente: “O homem vai na ‘carreira’ até a parada”, ao retrucar a fala, uma mulher recebe a resposta “vai lavar uma louça, ‘rapa’”.

Violência

O machismo é um preconceito expresso por opiniões e atitudes que se opõem à igualdade de direitos entre os gêneros, favorecendo o masculino em detrimento do feminino. Na prática, uma pessoa ou comentário machista também é aquele que se opõe a medidas que buscam equiparar direitos.

Em entrevista à REVISTA CENARIUM AMAZÔNIA, a especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos, Aurilene Mesquita, destaca que os comentários sobre a nova medida desconsideram o fato de que as mulheres estão sujeitas, além da violência patrimonial – roubos, furtos, sequestros – estão vulneráveis a outras formas de violência.

Ela destaca que a violência afeta homens e mulheres de formas distintas, e que o papel de homens e mulheres é buscar mecanismos de combate e enfrentamento às diferentes expressões de violência.

Os comentários focam no viés patrimonial e esquecem que as mulheres sofrem violências outras. As mulheres estão mais sujeitas a sofrer o assédio e a violência sexual, ressaltou.

A especialista enfatiza ainda a necessidade de capacitar os motoristas dos transportes públicos para compreenderem a importância da lei. “O machismo é um impeditivo para que as mulheres acessem seus direitos. [O machismo] Está presente na sociedade e precisa ser combatido no dia a dia”, completou.

A portaria que regulamenta a medida ainda não foi publicada no Diário Oficial. À imprensa, a Prefeitura de Boa Vista afirma que a Empresa Cidade de Boa Vista, concessionária do transporte público da capital, já é instruída a orientar os motoristas a atender essas solicitações. Caso haja recusa, as mulheres podem formalizar denúncia pelo telefone 156.

Violência em deslocamentos afeta três em cada quatro mulheres no Brasil. (Foto: Getty Images)
Insegurança

A estudante de Contabilidade Vanessa Lopes, 25 anos, relata a dificuldade ao voltar para casa à noite. “Eu sempre perdia o ônibus porque, até eu chegar no ponto, ele já tinha passado. Os homens não entendem que nosso maior medo nunca é o assalto, e sim o estupro.

A estudante de Geografia Alice Pereira, 19 anos, conta que já viveu momentos traumáticos ao usar o transporte público à noite e diz sentir diariamente o medo do assédio e violência sexual. “Minha aula acaba às 22h e desço às 23h no ponto de ônibus, que é bem distante da minha casa. Já fui perseguida, intimidada. Muita coisa ruim já aconteceu”.

“Só critica a medida quem não é mulher, toda hora de olhos atentos lutando pelo direito de não ser estuprada, assediada ou morta. Agora vou poder descer mais perto de casa e me sentir um pouco mais segura, mas o medo dentro de mim não vai acabar completamente”, esclareceu a estudante.

Estupros

Os dados explicam o medo constante das mulheres. Segundo os dados do 17º Anuário de Segurança Pública, divulgado em julho de 2023, Roraima ocupa o primeiro lugar no ranking nacional de estupros em geral e estupros de vulnerável por habitantes.

O Estado teve registros de 726 casos no ano de 2022, 24,3% a mais que o Acre, Estado que ocupa a segunda posição na pesquisa. A estatística ainda traz o aumento alarmante de 95,1% dos números de assédio sexual, que aumentaram de 66 para 75 e importunação sexual, subindo de 36 para 72 casos.

A pesquisa Percepções e Experiências das Mulheres quando se Deslocam pelas Cidades, realizada pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva, em parceria com a Uber, coloca em números aquilo que muitas mulheres já percebem em seu cotidiano: que o simples fato de caminhar, se locomover, já é um fator de risco. De acordo com o levantamento, 74% das mulheres passaram por violência em deslocamentos nas cidades. Três em cada quatro mulheres já sofreram violência em deslocamento no Brasil. As mulheres que andam a pé são as mais vulneráveis, de acordo com a pesquisa.

Editado por Yana Lima

Revisado por Gustavo Gilona