Erros em prisões por reconhecimento fotográfico alertam para racismo estrutural, analisam especialistas

Após passar dois dias preso, o professor de educação física Clayton Ferreira Gomes dos Santos deixou a delegacia (SP-18.abr.24 - Paulo Pinto/Agência Brasil)

22 de abril de 2024

14:04

Jacildo Bezerra – Da Agência Cenarium

BOA VISTA (RR) – As prisões de pessoas baseadas apenas em reconhecimento fotográfico que, posteriormente, comprova-se equivocada, é um “erro clássico do sistema de justiça criminal” e tem relação com o racismo estrutural, analisam juristas consultados pela AGÊNCIA CENARIUM. Recentemente, um caso particular ganhou repercussão nacional: o professor de educação física Clayton Ferreira Gomes dos Santos foi preso por sequestro e roubo após a vítima o “reconhecer” em uma foto de dez anos atrás.

Após passar dois dias preso, o professor de Educação Física Clayton Ferreira Gomes dos Santos deixou a delegacia (SP-18.abr.24 – Paulo Pinto/Agência Brasil)

Especialistas ouvidos pela reportagem analisam que este caso é mais um dentre centenas onde pessoas são presas injustamente por conta de erros processuais que punem, principalmente, negros e pobres. Clayton, por exemplo, ficou preso por dois dias após ter ido a uma delegacia prestar depoimento acerca do crime ocorrido em 31 de outubro de 2023. Ele foi informado sobre o mandado de prisão no local.

Para o advogado criminalista e doutor em Direito Penal José Carlos Abissamra Filho, a prisão ilegal do professor de educação física “é um erro clássico do sistema de justiça criminal”. Especialista em políticas públicas criminais, ele afirma que esse tipo de ocorrência ainda é bastante comum e “causa danos irreparáveis tanto para quem sofre com o erro quanto para o próprio sistema, pois o real autor do fato continua solto e impune”.

Autor de “Política Pública Criminal – Um Modelo de Aferição da Idoneidade da Incidência Penal e dos Institutos Jurídicos Criminais“, Abissamra Filho alerta que falhas no reconhecimento de suspeitos de cometimento de crimes, seja ele realizado de maneira presencial ou por fotografia, é uma das grandes causas de condenações judiciais equivocadas.

Após passar dois dias preso, o professor de Educação Física Clayton Ferreira Gomes dos Santos deixou a delegacia (SP-18.abr.24 – Paulo Pinto/Agência Brasil)

O criminalista explica que o instituto está estipulado no Artigo 226 do Código de Processo Penal, que apresenta um conjunto de etapas que devem ser seguidas para sua validação legal. “Ao longo do tempo, a jurisprudência tendeu a flexibilizar as exigências desse artigo, tratando-o mais como uma recomendação do legislador do que como uma obrigação rigorosa”, resume. “No entanto, uma mudança significativa ocorreu quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em resposta a preocupações sobre erros de identificação, decidiu reverter essa interpretação.”

Após um amplo debate com acadêmicos e outros setores da sociedade, o STJ definiu que o reconhecimento é de fato obrigatório e que as formalidades do Artigo 226 devem ser rigorosamente seguidas. Além disso, ficou estabelecido que o procedimento por meio de fotografia não pode ser considerado como prova, sendo arriscado e sem base legal.

Mesmo que seja realizado, deve ser visto apenas como uma etapa preliminar ao reconhecimento formal, seguindo os protocolos do Artigo 226. No entanto, é importante notar que o próprio procedimento de reconhecimento, conforme estabelecido pelo Artigo 226, é falho e merece atenção separada”, ressalta Abissamra Filho.

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Sistema acusatório

Para o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Roraima (OAB-RR), Ednaldo Gomes Vidal, o Brasil tem um sistema acusatório ditatorial em detrimento do processo penal humanizado nos termos do Artigo 1º, Inciso III da Constituição Federal de 1988. Isso faz com que mais de 34% das condenações em primeiro grau sejam desconstituída em segundo grau.

Segundo Vidal, se o CNJ fizesse uma correção das sentença condenatória no Estado de Roraima, 20% sofreria algum tipo de alteração para menos em face dessas condenações. ”O Artigo 386, Inciso VII do Código de Processo Penal e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal pacificou que na dúvida IN DUBIO PRO REO [expressão usada no direito que significa ‘na dúvida, a favor do réu’]. Mas, nos tribunais, se aplica, na maioria das vezes, contra os réus”, afirmou Vidal.

Vidal alertou ainda para o fato de que 30% dos presos do sistema penitenciário de Roraima poderiam, hoje, estar usando tornozeleira eletrônica. Cada um “custa” quase R$ 3 mil para o Estado. Com tornozeleira, o valor cai para R$ 350. “É o dinheiro da sociedade tratado com desídia”, afirmou.

Presidente da OAB-RR, Ednaldo Gomes Vidal (Ascom/OAB-RR)
Erros judiciais

As principais causas de erros judiciais são falsas acusações, reconhecimento errado do autor do crime, perícias imprecisas, abusos de agentes estatais e confissões forçadas, muitas vezes obtidas mediante tortura, segundo as criminalistas Maíra Fernandes e Dora Cavalcanti no 24º Seminário Internacional de Ciências Criminais, promovido pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), no último dia 29, em São Paulo.

A advogada criminalista Maíra Fernandes (Reprodução/Arquivo pessoal)

Maíra Fernandes, que foi presidente do Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro, afirmou que nunca viu um reconhecimento de autor ser feito de acordo com os requisitos do Artigo 226 do Código de Processo Penal. Para ela, a regra do Inciso II é especialmente desrespeitada. O dispositivo estabelece que “a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la”.

Em muitos casos que chegavam a mim no Conselho Penitenciário, o reconhecimento era feito da seguinte forma: pegavam o sujeito preso — com cara de preso, sem banho, abatido — e colocavam do lado dele funcionários do cartório, todos arrumados, com roupas sociais. É claro que a vítima sempre reconhecia o sujeito [como autor do crime]”, contou a advogada.

Além disso, afirmou, diversas vezes policiais pressionam a vítima para dizer que um dos elencados é quem praticou o delito. “E a definição de quem é suspeito ou não costuma seguir filtros racistas e classistas“, destacou Maíra.

Racismo estrutural

O criminalista Abissamra Filho destacou que há vários estudos indicando que a memória humana é falha, pois realiza associações que muitas vezes não são facilmente comprováveis.

Muitas vezes a vítima faz o procedimento de reconhecimento ‘ao vivo’, segundo os termos da lei, e é traída por sua própria memória. Há, inclusive, pesquisas que revelam haver racismo estrutural nesse tipo de situação. Nossa memória não apenas se engana, mas também faz associações, traz lembranças e induz segundo nossa subjetividade, então mesmo o reconhecimento formal não é uma etapa probatória segura”, resume o jurista.

A consequência é que muitos erros judiciários são derivados de reconhecimentos inválidos. “Então, como é que você lida com isso? É preciso ter outras provas. Com os meios que temos hoje, há condições de se fazer investigações que não dependam somente do reconhecimento”, conclui.

O Brasil já é o terceiro País que mais encarcera no mundo. Os dados mostram que, aqui, o encarceramento em massa resulta em um encarceramento massivo de negros e negras. A taxa de negros aprisionados é consideravelmente maior quando comparada ao de brancos em cárcere.

Os números mostram que 60% dos que estão presos hoje são negros, pobres e sem escolaridade. Segundo estudos, essa é a parcela da população com maiores chances de ser presa por tráfico de drogas e com menos chances de conseguir ser solta em audiência de custódia.

Alguns estudiosos afirmam que esse contexto é responsável pela manutenção da desigualdade social e do racismo estrutural e sua atuação se dá por uma lógica punitivista.

Rio de Janeiro implementou sistema de reconhecimento facial recentemente (Fernando Frazão/Agência Brasil)
População carcerária

Levantamento do Conselho Nacional de Justiça mostra que o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo, com 715,6 mil presos, de acordo com dados do Centro Internacional de Estudos Prisionais (ICPS, na sigla em inglês), do King’s College, de Londres, na Inglaterra. Os Estados Unidos lideram a lista com 2,2 milhões, seguidos pela China, com 1,7 milhão.

O índice é reforçado por uma dinâmica que se repete no sistema de justiça criminal brasileiro: o encarceramento atinge majoritariamente jovens de até 29 anos de idade (55%), negros (64%), com baixo grau de escolaridade, sendo que 75% sequer acessaram o ensino médio.

Esse perfil é confirmado pela análise sociodemográfica realizada na pesquisa “Encarceramento, políticas públicas e atuação da Justiça em territórios de vulnerabilidade social”. Nesse estudo, o perfil das pessoas autuadas é, em geral, homem jovem, com pouca ou nenhuma escolaridade, de baixa renda, sem filhos e oriundos de áreas de média a muito alta vulnerabilidade.

Entenda o caso

Clayton Ferreira Gomes dos Santos ficou preso dois dias, acusado de sequestro e roubo, crime ocorrido em 31 de outubro de 2023, na cidade de Iguape, litoral de São Paulo. O caso somente foi solucionado porque o advogado de Clayton apresentou a folha de ponto de uma escola no bairro da Saúde, Zona Sul de São Paulo, a 200 quilômetros do local do incidente, onde o professor trabalha e estava no dia do crime.

A prova usada pela Polícia Civil de São Paulo contra ele foi o reconhecimento feito pela vítima com base em uma foto de dez anos atrás, na qual Clayton estava com um visual diferente (cabeça raspada) do atual (cabelo black power). “Decretaram ali que eu era culpado”, diz o professor ao site Metrópoles.

O professor foi detido ao comparecer à delegacia para prestar depoimento, acreditando não ter feito nada de errado. Ele foi informado sobre o mandado de prisão no local. Segundo o advogado de Clayton, ele tinha sido vítima de furto anteriormente e foi à delegacia acreditando que era para tratar desse assunto. Ele foi surpreendido com o mandado de prisão temporária pelo crime que não cometeu.

Clayton pediu comprovantes à escola onde leciona educação física, na capital paulista, para provar sua inocência. Perguntou também por qual motivo os investigadores não procuraram saber mais detalhes a respeito da pessoa que estavam mandando prender, como o local de trabalho, onde mora e o histórico de vida, sem antecedentes criminais.

No entendimento da defesa, o professor está passando por “constrangimento ilegal” por causa da “injusta prisão“. A defesa do professor também destacou que o reconhecimento fotográfico como base para a detenção deve ser apoiado por outras evidências.