‘Índio do Buraco’: PF desconhece existência de corpo em superintendência e entidades cobram sepultamento

Último de seu povo, o indígena foi encontrado morto em agosto no território Tanaru, onde viveu sozinho por quase três décadas (Mateus Moura/AGÊNCIA AMAZÔNIA)

25 de outubro de 2022

19:10

Iury Lima – Da AGÊNCIA AMAZÔNIA

VILHENA (RO) – “Causaram todo o genocídio do povo dele. Só sobrou ele. E ele não tem o direito de descansar, porque não estão deixando ele descansar. Não deixam ele sossegar nem na própria morte”. A declaração é da indigenista e presidente da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Ivaneide Bandeira Cardozo, ou apenas Neidinha Suruí, ao falar à reportagem da AGÊNCIA AMAZÔNIA sobre o que categoriza como um total “descaso”, criticando a demora da Fundação Nacional do Índio (Funai) em autorizar e realizar o sepultamento dos restos mortais do último remanescente de um povo que vivia isolado no sul de Rondônia, o indígena conhecido como “Índio do Buraco”. 

Já se passaram dois meses desde que ele foi encontrado morto, em 23 de agosto, no território Tanaru. Lá, viveu sozinho por quase três décadas, depois que seu povo foi completamente dizimado em conflitos contra fazendeiros e outros invasores da floresta, no final dos anos 1990, a ponto de se tornar o último sobrevivente. Recolhido para exames, que apontaram uma morte por “causas naturais”, segundo o governo federal, o corpo dele ficou por quase um mês em Brasília até voltar para Rondônia, mesmo a Polícia Federal (PF), agora, negando esta última informação.

Reportagem do Portal Diário da Amazônia diz que os ossos do “Índio do Buraco” estão na Superintendência da PF, em Vilhena, a 706 quilômetros de Porto Velho, por ordem da Funai, e que o corpo foi mandado de volta, devido à posição de Vilhena como “cidade polo da região sul-rondoniense” – justamente onde está localizada a TI Tanaru e, onde, também, o indígena já deveria ter sido enterrado, conforme previa a polícia, anteriormente. 

Procurada pela AGÊNCIA AMAZÔNIA, a assessoria da PF, em Rondônia, diz que “a operação foi toda comandada por Brasília” e que “nem a Superintendência Regional tem essa informação”.

Polícia Federal em Rondônia desconhece informação de que os ossos do “Índio do Buraco” estariam armazenados na Superintendência de Vilhena, no interior do Estado (Iury Lima/AGÊNCIA AMAZÔNIA)

Retrato ‘anti-indígena’

“Isso é vilipendiar o morto”, expressou, ainda indignada, a ativista e presidente da ONG Kanindé. “É um retrato muito claro de como esse governo anti-indígena e esse País tratam os povos indígenas: não respeitam nem a morte da pessoa”, acrescentou Neidinha Suruí.

Para a indigenista e ativista ambiental Neidinha Suruí, a demora no sepultamento representa a existência de interesses ocultos pelo território Tanaru (Kanindé/Reprodução)

Com a morte do último de um povo completamente desconhecido, resta uma dúvida: com quem vai ficar a terra indígena de mais de 8 mil hectares? “O que esse governo deveria fazer é enterrá-lo naquela área, porque a terra é dele; além de criar uma espécie de memorial, uma reserva ou um parque em memória e em respeito a esse povo todo que foi massacrado”, sugeriu a ativista e ambientalista.

Por outro lado, Neidinha acredita que o destino da Terra Indígena Tanaru será bem diferente e, também, mais trágico, mas nada tão distante da triste e severa realidade que se tornou a Amazônia, figurada pelo “passar da boiada”.

“Para mim, o que está por trás disso tudo [a demora no sepultamento], é que não querem que ele seja enterrado no seu território, pois querem grilar o território. Querem se apropriar desse território”, alertou. 

Área com mais de 8 mil hectares onde o ‘Índio do Buraco’ viveu sozinho por 26 anos. Fica entre quatro municípios do sul de Rondônia (Mateus Moura/AGÊNCIA AMAZÔNIA)

Protegida por portarias de restrição de uso da Funai, a terra Tanaru é dividida entre quatro municípios: Corumbiara, Chupinguaia, Parecis e Pimenteiras do Oeste. O local é cercado por muitas fazendas de gado e sofre grande pressão de pecuaristas e políticos. A Funai ainda não informou o que fará com a região. 

Em um dos raros registros em vídeo, o ‘Índio do Buraco’ aparece cortando um tronco de árvore com o que parece ser um machado artesanal (Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé/Reprodução)

Entidades cobram respostas

O enterro foi cancelado por meio de um ofício do atual presidente da Funai, Marcelo Xavier, sob a justificativa de que ainda falta uma análise genética mais detalhada que visa identificar a ancestralidade étnica do “Índio do Buraco”.

A decisão foi mal recebida pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que acionou o Ministério Público Federal (MPF) contra o gestor da fundação, pela demora em apresentar respostas sobre o sepultamento.

“(…) Passados mais de 54 dias da morte do indígena Tanaru, não há notícia sobre a data, o local e o sepultamento do mesmo”, publicou a Coiab. “A situação é grave e exige atuação enérgica do parquet [Ministério Público], que tem como missão constitucional a defesa dos povos indígenas”, acrescentou em nota.

No documento enviado ao MPF, a entidade pediu investigação contra Marcelo Xavier por “possíveis crimes” praticados por ele na gestão da Funai, especialmente, na demora para realizar o sepultamento do indígena da terra Tanaru, apontando omissão da parte dele frente ao órgão criado para preservar a existência e a memória das populações nativas do País.

Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia brasileira pede investigação contra Marcelo Xavier (Coiab/Reprodução)

“Desde meados dos anos 1990, quando surgiram as primeiras notícias sobre a existência do ‘Índio do Buraco’ e dos povos isolados Akuntsu e Kanoê, o MPF atua para resguardar o direito desses povos. Naquele período, o órgão realizou trabalho conjunto com a Frente de Proteção Etnoambiental Guaporé, da Funai, para que a área desses povos fosse respeitada e juridicamente resguardada”, diz o MPF.

A representação brasileira da organização não-governamental em defesa dos Povos Indígenas, Survival International, também repudiou a negligência. Chamou a pasta de “Nova Funai de Jair Bolsonaro e Marcelo Xavier”.

Genocídio

O “Índio do Buraco” ganhou este nome porque ficou conhecido por abrir covas na mata, comportamento que até hoje os indigenistas não entendem. Ele nunca aceitou estabelecer contato com o homem não indígena, nunca aceitou presentes, como ferramentas e alimentos, e também nunca reproduziu um único som, ao encontrar pessoas que vieram de fora da floresta. Visto poucas vezes, quase não existem registros dele, em vídeo.

O indígena ficou conhecido por abrir covas na mata e, até hoje, os indigenistas não entendem porque ele fazia isso (Reprodução)

O indígena, quando foi encontrado morto, estava deitado numa rede, vestido com roupas tradicionais e adereços feitos com penas de araras, como se esperasse pela morte. Para o mundo, a perda do homem tido como símbolo da resistência dos povos isolados de todo o Brasil, repercutiu como o exemplo do completo genocídio de uma população originária da Amazônia. 

Último de seu povo, o indígena sempre recusou qualquer tentativa de contato do ‘homem branco’ (Reprodução)

O que diz a Funai

Procurada pela AGÊNCIA AMAZÔNIA, a Funai não comentou sobre o suposto armazenamento dos restos mortais no prédio da PF, em Vilhena, e também não entrou em detalhes sobre o cancelamento do enterro. Disse apenas que ainda “aguarda os laudos para definir melhores procedimentos quanto ao sepultamento do indígena”.

Saiba mais sobre a morte do ‘Índio do Buraco’

Reportagem produzida pela TV Cenarium, em parceria com a TV Cultura, sobre a morte do ‘Índio do Buraco’, em agosto deste ano (TV Cultura/Reprodução)