Músicas indígenas do Alto Rio Negro ao Monte Roraima são eternizadas em acervo on-line

O projeto passou pela Comunidade de Canauanin, em Boa Vista, Roraima. (Yure César)

11 de maio de 2023

08:05

Marcela Leiros – Da Agência Amazônia

MANAUS – A região do Alto Rio Negro, no Noroeste do Amazonas, e do Monte Roraima, no Estado vizinho a este, foi onde, há dez anos, o doutor em Antropologia Social, mestre em Sociedade e Cultura da Amazônia e filósofo Agenor Vasconcelos registrou a música das etnias Baré, Baniwa, Tukano, Macuxi e Wapichana, criando o maior acervo on-line de música indígena do Brasil. À AGÊNCIA AMAZÔNIA, o pesquisador comemorou a primeira década do repertório histórico intitulado “A música das cachoeiras: do Alto Rio Negro ao Monte Roraima”.

O projeto, patrocinado pelo edital Natura Musical 2012, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, mais conhecida como Lei Rouanet, buscou descrever, conhecer e empoderar o gênero musical que conecta os dançarinos e músicos de hoje aos antigos ensinamentos musicais dos povos indígenas do Alto Rio Negro. Os sons foram captados com um estúdio móvel, entre março e abril de 2013.

Gravação durante a captação do projeto “A música das cachoeiras”, em Kumarakapay, na Venezuela. (Reprodução/Faxebook)

São quatro horas de gravações do gênero musical tradicional, assim como dez vídeos para o YouTube, capturadas nas regiões do município de São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas, a 1.702 quilômetros de Manaus, e da capital roraimense Boa Vista e a cidade de Pacaraima, na fronteira com a Venezuela. O acervo está, atualmente, disponível no site www.soundcloud.com/musicadascachoeiras/sets e na Livraria da Universidade do Amazonas (LUA), na Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

A inspiração para o projeto partiu do encantamento de Vasconcelos pelos rituais de danças, máscaras e músicas do indígena do Alto Rio Negro. O roteiro foi baseado nas expedições do etnologista e explorador alemão Theodor Koch-Grünberg à Amazônia. No repertório, a mistura de instrumentos. “Esse projeto de 2012 eu deixei bem aberto, seriam as músicas tradicionais, mas também músicas populares, composições com violão, tudo que os povos indígenas estivessem fazendo”, explica o pesquisador.

Captação na comunidade de Boqueirão, em Roraima. (Reprodução/Facebook)
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Críticas à modernização

Agenor Vasconcelos lembra, ainda, que o projeto não foi totalmente bem recebido na área acadêmica. Houve, e ainda há, críticas à modernização da tradição, algo que não é de sua responsabilidade, mas um movimento natural da musicologia dos indígenas. Para ele, os julgadores insistem no “indígena de Cabral”, o estereótipo do contato inicial de mais de 520 anos.

“Pelo lado dos músicos profissionais, formados nas universidades, trata-se de uma musicalidade indígena, diminuindo as capacidades musicais dos indígenas, de uma certa forma, baseada no modelo ocidental de música. Por outro lado, os antropólogos também ficam decepcionados porque não são os instrumentos tradicionais, arcaicos, bem antigos”, afirma, lembrando que buscou fazer um recorte do futuro indígena no contexto que se vive hoje, sem isolar no tempo.

Além dos instrumentos musicais tradicionais, outros, mais modernos, foram usados nas gravações. (Reprodução/Facebook)

Contradizendo os críticos, o pesquisador explicita que o projeto é um registro de valor inestimável para a cultura do Amazonas, já que mostra, juntando a tradição à modernização, as mudanças e continuidades das músicas indígenas.

“A gente percebe que tem algo que não muda, que vem desde muito antigamente, e por outro lado a gente vê que tem aspectos que mudam, mas que são banalizados e pensados por meio desses valores culturais, então a contribuição do projeto é de certa maneira singela, ele almeja fazer esse registro”, acrescenta.

Construção da musicologia

Apesar das críticas, o pesquisador afirma que o acervo serviu ao seu propósito e percebe isto na busca pelo material, que considera positivo. Hoje, a “música das cachoeiras” é usada em trilha sonora de filmes, exposições, museus do Sudeste, em intervenções artísticas nas ruas, em remixagens de DJs e mais: “Serviu muito para que os próprios indígenas fizessem as suas produções, esse era o principal motivo, gerar esse acervo na internet, de forma digital, atualizar as mídias, porque tudo isso já tinha sido gravado em CDs, em outras plataformas, mas não estava na internet”, complementa.

Para Agenor, o acervo fica como registro histórico, chegando a ser caracterizado, pelo Ministério da Cultura, como projeto de registro da cultura imaterial brasileira. “O registro tem esse valor, não é como uma teoria que a gente lança e depois de um certo tempo é ultrapassada. O registro fica como um acervo, um repertório histórico“, diz.

As músicas tradicionais dos povos indígenas foram gravadas pela equipe do pesquisador. (Reprodução/Facebook)


Atualização do acervo

Dez anos depois, Agenor Vasconcelos continua trabalhando para atualizar e expandir o acervo. No período, houve manutenção, com renovação de contratos. No doutorado, a música Kuximawara e a importância da entidade Jurupary – personagem mitológico da cosmologia Baré, Baniwa e Tukano – ganharam foco e há planos de registrar a musicologia do povo Dessana.

“São dez anos de acervo que eu penso que precisa ser atualizado também, precisa ser continuado, e vai acontecer, tem um projeto em parceria com o Jaime Diakara [indígena Dessana] que a gente vai fazer uma gravação, agora, só com música do povo Dessana. As coisas seguem e esse empoderamento, a militância pra que isso tenha um valor na sociedade brasileira, principalmente aqui na região Norte, é o nosso esforço, isso que a gente tem buscado”, conclui.