17 de janeiro de 2024
21:01
Luciana Santos – Especial para Agência Cenarium*
MANAUS (AM) – O Brasil comemora neste domingo, 21, o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. A data foi instituída no calendário oficial do País por meio da Lei Federal 11.635/2007, sancionada após a morte da Yalorixá baiana, Mãe Gilda (Gildásia dos Santos), vítima de um infarto fulminante provocado pela violência de um grupo de criminosos travestidos de cristãos que, dentre outras ações, invadiu e depredou seu terreiro localizado em Salvador.
Mas antes da morte física, Mãe Gilda já vinha sendo vítima de outros tipos de assassinato. Como já escrevi em outras oportunidades, faz parte do racismo impor às pessoas negras (e indígenas) a morte de sua cultura, saberes e religiosidade. É uma estratégia colonial que continua a existir. E Mãe Gilda passou por isso ao vivenciar uma sequência de ataques à sua moral e fé.
Vale a pena fazer também uma leitura interseccional do caso: além de ser uma Sacerdotisa de Religião de Matriz Africana, era mulher, preta, pobre e idosa; ou seja, possuía cruzamentos identitários que a deixavam ainda mais vulnerável em uma sociedade racista, machista, classista e etarista.
Mas focando na questão religiosa, sou adepta dos que defendem o conceito de Racismo Religioso para as violências contra o povo de Axé, pois há a inegável junção do racismo nestas ações. Bato paó para o professor doutor e Babalorixá Sidnei Nogueira por nos brindar com suas reflexões (dignas de quem carrega o senhor da Justiça) sobre o tema.
Aproveito também para destacar matérias recentes da AGÊNCIA CENARIUM onde são abordadas tanto as estatísticas que demonstram que a Intolerância Religiosa é maior contra os adeptos de religiões de matriz africana como a apropriação de aspectos dessa religiosidade por igrejas neopentecostais, ao mesmo tempo em que demonizam os mesmos elementos e práticas quando vivenciados nos terreiros.
E essa apropriação me faz lembrar um fenômeno curioso que tenho observado com frequência aqui em Manaus: virou cult cantar/tocar pontos nos pagodes da cidade. O público vai ao delírio. Seria algo maravilhoso se as pessoas, realmente, estivessem inclinadas ao diálogo inter-religioso ou mesmo ao antirracismo. Mas não estão. Muito pelo contrário: fazem questão de mostrar às pessoas racializadas e às macumbeiras, de fato, que não são bem-vindas naquele espaço branco, de classe média e cristão. Sei que não é um fenômeno novo, que já aconteceu com o samba e suas letras de exaltação à cultura negra. É só tocar Jorge Aragão para ver todo mundo apontando para a pele preta que não tem (e que não aguentaria ter).
Aos que chegam querendo impor seu colonialismo/eurocentrismo, um “escurecimento”: Terreiro é espaço sagrado de guarda das tradições africanas, no Brasil, e a sua liturgia e ancestralidade precisam ser respeitadas e preservadas. Isso deveria ser óbvio, mas não é.
Por fim, queria ressaltar, como um exemplo local de busca pela construção de uma cultura de paz, o diálogo inter-religioso existente entre a Articulação Amazônica dos Povos e Comunidades Tradicionais de Terreiro de Matriz Africana (Aratrama) e a Arquidiocese de Manaus.
Há 20 anos, no dia 19 de janeiro, o povo de Axé de Manaus participa, na Igreja de São Sebastião (Igreja Pontifícia, portanto, espaço do Vaticano), das comemorações em homenagem ao Santo Católico, que sincretiza com o Orixá Oxossi (Umbanda), Vòdún Sakpatá ( Jeji) e Vòdún Shpanan (Nagô Maranhense). Em dezembro, no Dia de Nossa Senhora da Conceição, padroeira do Amazonas, a Catedral Metropolitana também recebe, há 13 anos, o Balaio da Oxum.
A entrada num ambiente católico lembra o sincretismo que ocorreu em função da violência colonial, mas também deixa claro a disposição do Povo de Axé e da Arquidiocese de construir uma nova história de respeito, fraternidade e de combate ao racismo religioso. Fé e posicionamento político se fazem presente no que de melhor essas palavras podem significar.