‘Nunca encontrei a chave dos cadeados’

A liderança quilombola Maria Amélia dos Santos Castro e os caminhos trilhados por ela são abordados em pesquisa (Ricardo Oliveira/Revista Cenarium)

05 de julho de 2021

11:07

MANAUS – A história de luta na preservação do espaço e na conquista da demarcação, delimitação e titulação do território de direito é evidenciada através da trajetória de Maria Amélia dos Santos Castro, 61, cuja liderança é considerada exemplo de protagonismo construído junto aos quilombos do Rio Andirá. Natural da comunidade de Santa Tereza do Matupiri, um dos cinco quilombos em Barreirinha, a quilombola contou à CENARIUM sobre a jornada para romper os entraves impostos aos quilombolas, tanto no âmbito das instâncias administrativas quanto dos conflitos locais.

Esta luta é resumida na frase: “Os cadeados não se abriram de primeira e nunca encontrei essa chave”, citada por Maria Amélia, quando faz referência à constante batalha empreendida pelos quilombolas. A ex-presidente da Federação das Organizações Quilombolas do Município de Barreirinha (FOQMB), criada em 2009, e bisneta do ex-escravo Benedito Rodrigues da Costa, fundador do território, narra o descaso e a indiferença com os quais as comunidades sempre foram tratadas.

“A minha vontade é mais multiplicação. No começo dos meus pais, dos meus avós, não tinha ajuda do governo, tínhamos que nos virar”

Maria Amélia, líder quilombola.

“Quando comecei o levantamento de pessoas dentro da comunidade, no meu município, as autoridades nunca me receberam. Eu tentei, eu procurei as secretarias. Quando chegou a certidão de reconhecimento das comunidades quilombolas, fiz ofício e deixei, em cada uma das secretarias, um ofício acompanhado pela cópia do registro das comunidades, mas, mesmo assim, nunca o prefeito, nunca uma secretaria se abriu para dizer: ‘eu quero ver tua voz, eu quero conversar com você’”, lembra ela.

Título de direito

Mesmo com a indiferença das autoridades e em meio a conflitos no território de 27.816,1339 hectares já, parcialmente, devastados e ocupados por fazendas, assim como constantemente explorados por pescadores profissionais e madeireiros, a liderança de Maria Amélia se estabeleceu e a maior conquista foi adquirida. Entre os dois mandatos na FOQMB, correspondentes aos biênios de 2012-2014 e 2014- 2016, houve o reconhecimento oficial dos quilombos, pela Fundação Cultural Palmares (FCP).

“A Fundação Palmares me mandou um documento dizendo que era para fazer um levantamento de identificação das comunidades, se elas queriam ser quilombolas ou não. Passei uma semana trabalhando, dormia em uma comunidade, esperava o povo me aceitar. Aí eu dizia: ‘Olhe, eu não estou aqui no meu nome, mas estou aqui em nome da Fundação Palmares, que me manda essa documentação’. Aqueles que acreditaram assinaram, se identificaram como quilombo”, contou Maria Amélia, lembrando do processo para adquirir o título do território.

No entanto, mesmo com direito à chave, o cadeado ainda está trancado. Apesar da conclusão do processo em 2016, com a elaboração dos Relatórios Ambiental e Antropológico, arquivados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), os quilombolas das comunidades Boa Fé, Ituquara, São Pedro, Santa Tereza do Matupiri e Trindade aguardam, até hoje, a emissão oficial da Titulação Fundiária dos territórios.

Descendentes

Além das histórias de luta dos remanescentes pelo reconhecimento garantido no Decreto Nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, as narrativas contadas pelos descendentes do ex-escravo angolano Benedito Rodrigues da Costa remontam à fundação do quilombo.

O angolano foi o primeiro a chegar em localidades do Rio Andirá, nos fins do século XIX e início do século XX. Os fatos, narrados na tese de doutorado “Os cadeados não se abriram de primeira: processos de construção identitária e a configuração do território de comunidades quilombolas do Andirá (município de Barreirinha – Amazonas)”, de Maria Magela Mafra de Andrade Ranciaro, indicam que as comunidades foram fundadas posteriormente à chegada de Benedito.

Da união com a indígena Gerônima, filha de Júlia Sateré-Mawé, surgiram os descendentes que, até hoje, ocupam o espaço. Com a extensão da linhagem, o território ampliou-se para abrigar os 564 quilombolas remanescentes que habitam as comunidades, de acordo com levantamento feito em 2003.

Esperança na tradição

Apesar das lutas diárias, ainda há muita esperança para o futuro. Com dificuldades de adquirir renda oriunda das produções de farinha de mandioca, feijão e milho, já que não há mercado para escoar a agricultura, os quilombolas do Rio Andirá veem nos estudos oportunidade de prosperar. Inclusive é da titulação do território que vem um dos maiores benefícios: a chance de disputar vagas em instituições de ensino destinadas aos quilombolas a partir das cotas raciais.

“Hoje, as famílias que não aceitaram [a titulação] se arrependem e a gente não pode fazer nada, porque eu fui muito clara quando recebi a ordem da Fundação Palmares que aquele documento era um momento de você se reconhecer como remanescente. Agora, muitas pessoas dizem que querem ser reconhecidas. Filhos de muitos, hoje têm cota, tá estudando, na faculdade (SIC). Temos uns 15 alunos que já recebem cota”, disse a quilombola.

Maria Amélia pontua ainda que, com os direitos adquiridos, o desejo é usufruir dos outros benefícios que não existiam quando os quilombos surgiram. “A minha esperança para o futuro é que as minhas comunidades continuem sendo como antigamente, que todo mundo trabalhava para sobreviver do que plantava, do que criava. A minha vontade é mais multiplicação. No começo dos meus pais, dos meus avós, não tinha ajuda do governo, tinha que se virar”.